Todas as peças da máquina da Justiça são essenciais
Pode
ser que alguém entenda que advogado é importante porque mencionado na
Constituição como essencial à administração da Justiça. Embora seja
assim mesmo, não podemos nos esquecer que a Justiça é um enorme conjunto
de peças e nós advogados somos apenas uma delas, nem mais nem menos
importante que as outras.
Em entrevista, Eros Roberto Grau, então
ministro do Supremo Tribunal Federal, fez questão de afirmar: “Meu
ofício não é mais importante que o do jardineiro ou daquele que cuida da
saúde das pessoas” (Estado de S.Paulo, 27/8/2007, pág. A8).
O
princípio da isonomia é cláusula pétrea da Constituição e a Lei 8.906
estabelece que não há hierarquia ou subordinação entre advogados, juízes
e outros operadores do Direito, devendo prevalecer respeito recíproco
entre todos. Com isso, parece sem sentido ocupar-se o Judiciário com a
disposição de móveis numa sala de audiência, onde o juiz resolveu que a
posição de mesas e cadeiras deveria ser modificada. Presume-se que um
juiz seja a autoridade maior na sala onde exerce sua função e, assim,
possa determinar como ali se coloca a mobília.
Alguém que se
localize alguns centímetros acima das outras pessoas e, por isso,
imagina-se mais importante, deve procurar ajuda psiquiátrica. Exigir
esta ou aquela posição de cadeiras ou nível de mesas com base em
“secular tradição” é algo que não faz sentido neste século. Se tradições
seculares tivessem de ser levadas a sério, alguns desejariam restaurar a
escravidão, enquanto outros ainda sonhassem em ser chamados de condes,
duques e barões. Enfim, é uma sucessão de coisas ridículas que melhor
seriam examinadas num barracão de escola de samba.
Juízes são
muito importantes, sem dúvida, mas apenas como decorrência da função que
exercem. Ninguém é juiz porque é importante. Mas é importante porque é
juiz. O que importa é a função, não a pessoa. Se aquele que ao assumir
uma função pensar que por isso, de repente, foi transformado num ser
superior, mais cedo ou mais tarde vai descobrir que está errado. A
descoberta, não raras vezes, ocorre de forma traumática, cansando dor e
sofrimento ao suposto ser superior.
Nós advogados também nos vemos
às voltas com problemas parecidos. Um deles é essa besteira de sermos
tratados de doutor. Eis aí mais uma secular tradição que não tem
importância alguma. Ainda que o advogado tenha obtido o título acadêmico
numa respeitável universidade, o tenha comprado de um falsário ou de
uma fábrica de doutores localizada num país qualquer onde picaretas
desempregados só não estão vendendo a mãe porque ela já morreu, esse
título só interessa na academia.
Doutor e mestre são títulos
acadêmicos importantes para a vida acadêmica, para arranjar emprego na
universidade, para dirigir escolas, mas na advocacia o que interessa é o
advogado resolver o problema do cliente. Punto e basta. Hoje em dia ser
chamado de doutor não significa nada, não altera nada. Basta o
indivíduo colocar terno e gravata e se transforma em doutor. Isso não
faz sentido. Dizem que gravata é invenção dos soldados da Croácia. Deve
ser mesmo, pois se trata de uma coisa inútil e sabemos que soldados
quando não tem o que fazer inventam besteiras. Afinal, para que serve
uma gravata, além de nos incomodar no verão? Somos mais importantes ou
respeitáveis se não a usarmos? Chega de gravata e basta de doutor.
Mas
tem coisa pior! Nas reuniões do conselho da Ordem dos Advogados do
Brasil de São Paulo (OAB-SP), costuma-se adotar tratamento medieval.
Quando eu estava lá, achava engraçado o tratamento de excelência, o que
não tinha grandes problemas, até porque alguns conselheiros eram mesmo
excelentes. Mas quando me chamaram de nobre conselheiro eu não gostei
nem um pouco. Pelo que estudei de história sei há muito tempo que os
nobres quase sempre foram e são bandidos, não só no Brasil, mas em todos
os lugares. Nobres são e eram parasitas, vagabundos, ladrões, enfim,
maus elementos. Os conselheiros quando usavam (e parece que ainda usam)
tal tratamento em suas sessões ou estão fazendo uma grande brincadeira
ou uma grande ofensa coletiva. A menos, é claro, que todos já tenham se
esquecido das aulas de história.
A atividade do advogado é
diretamente ligada aos demais operadores do Direito e aos servidores
públicos. Vai daí que precisamos ter muita cautela para, como peças de
uma grande máquina, não atrapalhar o sistema, não bloquear os
movimentos, não criar problemas desnecessários. Uma coisa é certa:
advogados foram criados para resolver e não para criar problemas.
Discutem-se
com certa frequência problemas que surgem nesse relacionamento entre os
diferentes operadores do Direito. Uma juíza em determinada sentença
afirmou que o policial é um ser humano. Pois os juízes também são, ainda
que nas maldosas anedotas (talvez feitas por advogados) afirma-se que
parte deles pensa que são deuses e a outra parte disso tenha certeza.
O
trabalho do juiz é sem dúvida estressante. E antes que alguém reclame,
registro que também é estressante o dos policiais, dos servidores
públicos, enfim, de todas as pessoas que exercem com seriedade e
dignidade as suas funções. Claro que onde a remuneração não for adequada
o problema é mais grave.
Não podemos alimentar a insana fantasia
de desinformados que imaginam possa o advogado ser um mágico, um
milagreiro ou mesmo um traficante de prestígio. Advogados são
profissionais que defendem os direitos de seus clientes e normalmente
esses direitos contrariam outros, igualmente defendidos por
profissionais que se esforçam no sentido contrário. Por isso mesmo
nenhum advogado pode garantir coisa alguma, a não ser observar a lei,
cumprir prazos, promover diligências, preparar recursos, etc.
Assim,
ao contrário do que muitos colegas sustentam, creio que melhor
procedemos quando conseguimos evitar contatos verbais com o juiz. As
palavras voam, mas a escrita permanece. Os chamados “embargos
auriculares” servem apenas para incomodar o juiz, interrompendo o seu
trabalho e quase sempre criam entre o advogado e o magistrado um clima
de mútua desconfiança e mesmo de hostilidade. Em vez de melhorar o
andamento do feito, acaba prejudicando.
Disse-me um juiz certa vez
que se sentia isolado, pois os relacionamentos que conseguia
estabelecer na comarca eram raros e difíceis, não se sentia bem nos
eventos sociais para os quais era convidado e mesmo quando à noite dava
aula numa faculdade percebia que era tratado sempre como se estivesse de
toga, aquela capa preta esquisita que alguns usam até nas audiências.
Pois
é a tal maldita tradição secular. Não vem ao caso agora saber quem foi o
inventor daquela capa. Aliás, um dia dei boas gargalhadas quando vi um
advogado vestindo uma belíssima capa preta, ornamentada com babados e
rendas, posando diante de uma estante repleta de livros encadernados,
tudo no seu escritório para ilustrar reportagem de uma revista que o
considerava uma estrela da profissão.
Os juízes são humanos.
Devemos ter isso em conta e respeitar suas limitações. Seres humanos não
são tão importantes quanto se imaginam e isso a vida nos ensina a cada
dia. Certa ocasião, numa livraria, descontente com afirmação que fiz num
artigo onde critiquei o estrelismo de alguns colegas seus, um membro do
Ministério Público disse que realmente sua categoria era composta de
muitas estrelas, enquanto eu pertencia apenas ao grupo dos planetas.
Achei a conversa muito divertida e informei a ele que a astronomia
registra que estrelas servem apenas para explodir e brilhar durante
certo tempo, enquanto vida inteligente só é possível nos planetas e
parece que não em todos.
Pois é isso: com toga ou beca, sem beca
ou sem toga, nós não somos estrelas. Somos essenciais, sim, mas apenas
peças de uma grande máquina. E essa máquina chamada Justiça jamais
funcionará bem enquanto as peças não funcionarem em harmonia.
Os
policiais também são gente da Justiça. Embora sejam servidores do Poder
Executivo, suas funções são absolutamente necessárias ao funcionamento
da máquina judicial, pois o artigo 144 da Constituição regula as
Polícias, no capítulo da Segurança Pública, como instrumentos para
apuração de infrações penais e outras atividades complementares,
necessárias à consecução da Justiça.
Parece-nos que muita gente
ainda pensa a Polícia como se estivéssemos na Idade Média, o que não
acontece só no Brasil. Governantes medíocres desde sempre viram a
Polícia como um instrumento de intimidação dos seus desafetos, meio de
repressão contra manifestações políticas ou até coisas piores. Esse
quadro era possível, mas já está mudando. Na época das tais tradições
seculares, o mandachuva de plantão chamava o chefe de Polícia local e
lhe ditava as ordens que bem entendesse e estas eram cumpridas sem
discussão.
Mas o mundo mudou, pessoal. Estamos na era da internet,
das viaturas com câmaras de vídeo, dos celulares que fotografam e
transmitem a foto no ato, enfim, quem está preso na Idade Média pode se
libertar pela tecnologia ao alcance de todos. A privacidade está
acabando, a censura já era e todos vamos ser iguais mais cedo ou mais
tarde, dependendo só de um pouco de educação.
Nesse contexto, a
Polícia assume cada vez mais seu papel de serviço público. É aquela
velha história: seu direito vai até onde começa o meu e se você
ultrapassar o limite, vai responder por isso. Simples assim.
Claro
que sempre haverá problemas, pois se somos humanos, somos falhos. Mas
não podemos ficar apontando os erros dos nossos companheiros de jornada,
as outras peças dessa grande máquina, como se nós fossemos perfeitos.
Em diversas ocasiões que tive contato com policiais, sempre fui bem
tratado e nunca me sugeriram, propuseram ou mesmo insinuaram qualquer
coisa fora da lei. Mas já vi um moleque engravatado (talvez advogado)
tratar com grosseria uma escrivã de Polícia. O idiotinha deslumbrado
queria ser atendido de imediato e o tempo todo dizia que teria uma
reunião muito importante no escritório que, segundo ele, era um dos
maiores do país.
Lembrei-me no ato de antiga lição que me deu um
advogado de uma cidade do interior, quando eu ainda estava no segundo
ano de Direito e fui visitá-lo. Ele me mostrou cópia de uma ação onde
uma multinacional processava empresa daquela cidade. A inicial de mais
de cem páginas trazia na primeira vasta relação de advogados do grande
escritório da capital, integrado por mais de uma centena de
profissionais. Eu perguntei a ele como se defenderia em causa tão
complexa e ante banca tão portentosa. Ele respondeu: “Se eles tivessem
razão, não precisavam escrever tanto. Boiada também tem muitas cabeças,
mas todas são de quadrúpedes e muitas têm chifres”. Achei a resposta
pretensiosa e grosseira, mas nunca me esqueci dela. E o advogado do
interior acabou ganhando a causa.
Por mais complexas e
sofisticadas que sejam, as máquinas, às vezes, podem ser destruídas por
peças pequenas, aparentemente sem importância, supostamente de pequeno
valor, que quase ninguém vê. Dizem que foi um pequeno dispositivo
externo, destinado a medir temperatura ou a velocidade, que fez cair
aquele avião da Air France, lembram?
Ora, se policiais são seres
humanos, os servidores todos também são. Muito embora juízes sejam os
titulares da vara e o cartório seja conduzido por um escrivão ou
diretor, os demais servidores são peças muito importantes na máquina e
merecem respeito, consideração e condições decentes de trabalho.
Por
isso mesmo é triste, ridículo e fatal que um advogado ou mesmo um
estagiário tente fazer seu trabalho sem dar ao servidor público o
respeito que lhe é devido. Eis aí o grande quesito: respeito. Quem vai a
uma repartição e se comporta de forma arrogante, imaginando-se superior
ao servidor que o atende, não só revela mau caráter mas burrice.
Mesmo
aquele advogado que se julgue uma grande estrela da profissão vai ver
seu trabalho prejudicado quando se dirigir de forma grosseira e
prepotente a qualquer pessoa, seja o escrevente, o investigador, o
porteiro, o contínuo ou o faxineiro da repartição.
Por tudo isso,
soam ridículas as referências a tradições seculares, nobres
conselheiros, meritíssimas excelências, professores mestres e doutores e
outras papagaiadas idiotas que pretendam criar a fantasia de que entre
os operadores do Direito existem pessoas mais importantes que as outras.
Nós
todos, advogados consagrados ou anônimos; juízes que nos olham de cima
de tablados; promotores que figuram nas colunas sociais; mestres e
doutores que encantam aprendizes nas academias; policiais que se
imaginam heróis de filme americano; no final das contas somos todos
essenciais. Mas apenas peças da grande máquina da Justiça. A máquina é
importante, as peças nem tanto.