quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Os Estados Unidos gastam mais energia com refrigeração do que a África inteira gasta com tudo; e, ainda assim, a despesa com refrigeração corresponde a apenas 8% dos gastos de um típico lar norte-americano, contra os mais de 40% representados pelo aquecimento.

Cora Rónai é jornalista especializada em Tecnologia da Informação, editora do caderno Informática, etc… do jornal O Globo.
‘Não estou sozinha nessa relação de amor e ódio com o ar condicionado’
Na semana passada, fiz uma declaração apressada no Facebook:
“Olá, meu nome é Cora Rónai e estou há 24 horas sem ligar o ar-refrigerado.”
Durou pouco a minha determinação. No dia seguinte ligaram o maçarico de novo e eu, claro, liguei o ar. Salvo esse breve interlúdio, respiro por aparelhos (Consul e Electrolux) há mais de um mês. Como venho de um mundo em que ar-refrigerado só existia nos cinemas e em lojas como a Sears ou a Sloper, não gosto dessa dependência. Não gosto de não conseguir dormir sem criar uma atmosfera artificial, não gosto de não conseguir trabalhar à temperatura ambiente, não gosto de ficar ressentida com a natureza lá fora só porque ela não tem ar-condicionado central.
Não estou sozinha nessa relação de amor e ódio. Na edição de 5 de janeiro, a “The Economist” trouxe matéria assinada pela sucursal de Dubai a respeito do planeta refrigerado em que vivemos. Nela descobri um autor que não conhecia, o cientista Stan Cox, e um livro que já encomendei, chamado “Losing our cool”. Sua descrição na amazon.com diz o seguinte:
“Embora salve vidas em temperaturas muito altas, o ar-condicionado está modificando a sensibilidade dos nossos corpos ao calor; os nossos índices de infecção, alergia, asma e obesidade; e mesmo o nosso impulso sexual. O ar-condicionado corroeu vínculos sociais e prejudicou a aventura da infância; alterou a forma como dormimos, comemos, trabalhamos, compramos, relaxamos, votamos e fazemos tanto o amor quanto a guerra.”
Não é pouca coisa para uma tecnologia já centenária, que evolui a passo de cágado. Gwyn Prins, professora da Universidade de Cambridge, acha que a dependência física do ar-refrigerado é a epidemia “mais difundida e menos notada da América”. Continue lendo...
Parece exagero e talvez seja, mas o fato é que cada vez convivemos menos com o calor. Dormimos cobertos o ano inteiro. Saímos do ar-refrigerado de casa para o ar-refrigerado dos carros, que nos levam para escritórios e lojas igualmente refrigerados. Chegamos ao cúmulo de andar com xales ou casaquinhos na bolsa, em pleno verão, para não passar frio no cinema ou no restaurante — num fenômeno semelhante, ainda que inverso, ao do superaquecimento de ambientes no inverno do Hemisfério Norte.
Em suma: perdemos — ou estamos perdendo — o nosso fio terra.
A matéria da “The Economist” tem dados interessantes. Até os anos 50 do século passado, viviam na região do Golfo menos de 500 mil pessoas. Hoje já são mais de 20 milhões de habitantes, instalados em prédios que, sem ar-refrigerado, não teriam a menor condição de habitabilidade.
Naturalmente, não há nada de democrático no uso do ar. Os ricos, pessoas e países, abusam do fresquinho, enquanto os pobres sofrem em silêncio. Os Estados Unidos gastam mais energia com refrigeração do que a África inteira gasta com tudo; e, ainda assim, a despesa com refrigeração corresponde a apenas 8% dos gastos de um típico lar norte-americano, contra os mais de 40% representados pelo aquecimento.
O impacto do ar-refrigerado nos ambientes onde vivemos é óbvio, ainda que relativamente pouco estudado. Os belos e altos pés-direitos que caracterizavam as construções em países tropicais foram substituídos por tetos rebaixados, e varandas e alpendres são cada vez mais raros. Antes construídos em torno de pátios internos, os prédios viraram caixotes compactos em que o ar, propositalmente, não circula. Sem falar que há cada vez menos espaços públicos ao ar livre, o que muda a dinâmica da interação social. Antigamente as pessoas se encontravam na praça, que era lugar de convivência e passagem; hoje se encontram nos shoppings.
O Rio, felizmente, se salva desse quadro patético graças à praia, que continua sendo o grande ponto de encontro da cidade.
O Facebook deu de fazer perguntas aos usuários. Agora mesmo me perguntou como eu estava me sentindo, mas não lhe fiz caso. A ideia é, suponho, dar um empurrãozinho nos novatos que não sabem ainda se comunicar na rede social. O truque, que funciona nos EUA, de onde foi importado, não dá certo entre nós, latinos, que não carecemos de assunto. O resultado é que a maioria das pessoas responde, quando responde, com maus modos e irritação. Mas há quem responda com humor e elegância, como o poeta e diplomata português Luis Filipe de Castro Mendes, que há alguns anos serviu como cônsul aqui no Rio:
“Ainda bem que pergunta. Realmente ninguém tem interesse em saber como eu me sinto (rabugento, irritado com as notícias, saudoso do futuro, esfíngico e fatal, com os pés frios, acabrunhado pela miséria do mundo, já com um bocado de sono, cheio de fome e de sede de infinito, tenebroso, belo, inconsolável, contribuinte sem dívidas ao fisco, um pouco blasé, príncipe de Aquitânia com a torre abolida, lúcido, merda, lúcido, com a televisão já desligada, caminhando radioso sobre a minha miséria, se quiserem continuo...). E é isto, só o Facebook quer saber como me sinto. Ninguém mais. Nem eu.”

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