‘A MULHER MODERNA É O CONTRÁRIO DA AMÉLIA’, DIZ CHICO DA
SILVA
Cantor e compositor, ele bem que poderia ter virado jogador
de futebol, não fosse um problema no menisco aos 16 anos. Mas o que esse
parintinense sabe fazer como ninguém é mesmo contar as histórias de suas aventuras
pelo Brasil
NEUTON CORRÊA – Á CRÍTICA
Voz inconfundível e uma memória afiada. O parintinense Chico
da Silva conta nessa entrevista causos como o de quando foi escalado pela
gravadora, em 1977, para fazer frente a um artista concorrente, Martinho da
Villa, e da viagem a Belém para brigar com o PT pelo uso indevido da música
“Vermelho”. Autor de grandes clássicos do samba brasileiro, Chico quase foi
jogador de futebol e tem formação de torneiro mecânico. Mas o que ele faz como
ninguém, além de música, é contar histórias. Confira abaixo, na íntegra, a
entrevista concedida à rádio A Crítica FM.
No início dos anos
80, você parava Parintins quando visitava a cidade. Lembro uma ocasião em que
os fãs foram ao aeroporto e fizeram uma passeata enorme, que te conduziu direto
para o estádio. E você chegou a entrar em campo pelo Sulamérica.
Me lembro desse dia. O Peninha (cantor) estava comigo.
Parintins é uma cidade maravilhosa! Ali nasce um artista a cada cinco horas. A
cidade parece que tem um poder mágico de produção cultural. E eu era bom
jogador, cheguei a receber proposta de times profissionais na adolescência.
Podia ter feito carreira, mas machuquei o menisco aos 16 anos. Naquela época o
tratamento para esse tipo de contusão era muito difícil.
Nessa época você já tinha lançado vários discos e era bastante
conhecido, certo?
Meu primeiro disco é de 1977. Chama-se “Samba: quem sabe
diz...”. Porque samba, na gíria do sambista, não se canta. Samba se diz. Tanto
é que quando vão pedir música, falam assim: diz um samba ai. Foi meu primeiro
long play e fez um grande sucesso, principalmente com a música “Pandeiro é meu
nome”, que entrou na trilha da novela “Sem lenço e sem documento”. Esse vinil
integra a discografia completa que estou relançando. A gravadora me deu o
acervo, sem ônus (não é preciso repassar os direitos para a empresa), para
comercialização no Amazonas. Já lancei o volume 1 e o volume 2, que é o “Samba
também é vida”.
Como foi a “invenção”
do Chico da Silva. Você foi mesmo lançado pela Phonogram, que virou Polygram e
depois Universal, para fazer frente a um outro fenômeno, que era o Martinho da
Villa?
Sim, mas no começo eu nem percebia isso. O produtor que me
contratou era argentino e achou que minha voz, o timbre da minha voz, era o
mesmo do Martinho, especialmente nos graves. Ele achou então que eu deveria
cantar igual. E eu, nos programas de calouro, já cantava músicas do Martinho da
Villa. Cantei no programa do Silvio Santos, no Bolinha, na Record. Até nesse
menino agora, Raul Gil, que já tinha programa de calouros. Fui calouro de
programa de TV em São Paulo, onde morei 12 anos, o que me deu uma experiência
muito grande e me levou para a noite. E na noite eu passei a cantar muitas
músicas do Martinho.
Então essa relação
com Martinho da Villa já existia?
Na noite de São Paulo, me tornei um dos maiores intérpretes
do trabalho dele, tanto é que restaurante s e boates de ponta me contratavam só
para isso. Cheguei a substituir o Martinho da Villa de certa feita, em uma
boate que ele não compareceu para cantar. Depois nos tornamos amigos, por meio
dos “Originais do samba”, que eram muito próximos do Martinho. E foi por meio
deles também que conheci vários artistas e cheguei à Phonogram. E a maior
coincidência é que a primeira música minha que eu gravei, “Barba Azul”, eu
compus para o Martinho. Quando eu me tornei amigo dele, na época do Jogral,
ensaiávamos toda tarde e um dia mostrei a música. Ele já estava com um disco
completo e ficou de usar no ano seguinte. Acontece que nesse intervalo fui
contratado e eu mesmo gravei a música.
Como foi sua ida para
São Paulo? Você já vivia de música nessa época?
Fui para o Sudeste em 1966, com 19 anos. Era estudante da
Escola Técnica Federal do Amazonas e tinha a prática de ofício. Sai da Escola
Técnica com a mesma profissão do presidente Lula: torneiro mecânico. Fui
primeiro para o Rio de Janeiro, num navio da Marinha Mercante, “escondido” com
a ajuda da tripulação e clandestino para a companhia dona do navio. Logo depois
me mudei para São Paulo. Eu já cantava, mas foi lá que comecei a cantar na
noite.
E você já era
conhecido? Já foi com alguma referência?
A arte é uma coisa muito interessante... Ela te arrebata e
você, quando menos espera, está completamente envolvido. E as pessoas vão
descobrindo e no final, dá no que deu: você acaba sendo chamado para exercer
aquilo que você sabe fazer melhor.
É verdade ou lenda que você trabalhou como flanelinha no
Maracanã?
Não é verdade. O que eu já fiz foi lavar carro. Trabalhei
muito com isso em São Paulo. É uma atividade boa para você ganhar um troco, um
dinheiro legal. E é um trabalho rápido, sem obrigação de cumprir horário. É só
chegar, lavar o carro e receber a grana.
Como é a história de
sua ida a Belém, onde estavam usando a música “Vermelho” na campanha do PT?
Tenho fã clube em vários Estados do país. No Pará tenho
grupos de fãs organizados em Castanhal, Marabá, Breves e na própria capital.
Tudo que acontece referente ao meu trabalho, eles me ligam avisando. Então na
primeira campanha do Edmilson (Rodrigues), ainda pelo PT, me avisaram: estão
usando o “Vermelho”. Agora ele é do Psol, inclusive na eleição passada estava
muito bem e era favorito, mas cometeu a besteira de incorporar o PT na
campanha... Enfim, no primeiro turno eu deixei quieto, mas no segundo turno,
baixei lá. Fui com o Pedrinho Ribeiro, que era meu assessor nessa questão.
Quando percebi que o Pedrinho estava meio devagar na negociação, eu mesmo
encarei o Edmilson, num comício. Me apresentei e avisei que estavam usando
indevidamente a música. Daí enfrentei o PT inteiro.
E você conseguiu
receber?
Foi uma confusão danada! Na época, consegui que me pagassem
R$ 30 mil. Pedi R$ 60 mil para eles me darem R$ 30 mil, que é quanto vale um
bom jingle. O “Vermelho” já era um sucesso. E é até hoje. Tenho dez processos
contra políticos de todo o Brasil pelo uso indevido da música, recentemente
teve um caso desses em Maués.
E o “causo” do hotel
Hilton? Como foi?
Estava em Belém sem grana, com bem pouco dinheiro. Só tinha
dinheiro no banco, mas quem controlava a conta era minha mulher. Então fui para
um hotel chamado 77, desses com “alta rotatividade”. Era perto do teatro da
Paz, que fica em frente ao hotel Hilton. O gerente era um ex-músico que tinha
tocado comigo. Liguei para o Pedrinho (Ribeiro), avisando que já tinha chegado
a Belém para correr atrás do prejuízo com o PT. Ele perguntou: “Onde você
está?” E eu: “Sabe onde é o Hilton?”. Ele: “Ah! Tá no Hilton!”. Eu: “Então...
Não. Tô num hotel atrás do Hilton”. Foi engraçado isso. E depois o PT queria me
pagar pelo “Vermelho” em cheque. Eu disse: preciso do pagamento em dinheiro
porque tenho que pagar o Hilton, a diária é mais de R$ 500 (risos).
Suas letras manifestam uma formação literária. Suas letras
tem reflexão. Tem muito do poeta Chico da Silva, mas tem também do escritor. A
música “A dama do vestido mal feito”, por exemplo, é um conto perfeito. O
vestido dela continua mal feito?
A dama do vestido mal feito continua precisando de um bom
costureiro. E esse costureiro é o povo. A dama é a pátria, a nação brasileira.
E ela segue mal vestida, todos os (líderes) que já apareceram não sabiam
costurar.
Qual a música que não
pode faltar no show? Aquela que, quando vai chegando ao fim da apresentação e
ainda não tocou, as pessoas começam a pedir?
Modéstia a parte, tenho várias. Tem “Pandeiro é meu nome”,
que eu considero meu hino. “Sufoco”, que ficou famosa na voz da Alcione, também
pedem muito. Pedem também “É preciso muito amor”.
Quem inspirou essa
música, aliás? Quem é essa mulher que tem que ser paparicada, senão chora e diz
que vai embora?
Fiz essa música para a mulher moderna, que é o contrário da
Amélia, o antônimo desse clássico do Ataulfo Alves. É uma mulher que vai a
luta, que não quer passar fome, que sabe bem o que quer. (A Crítica)
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