Arnaldo Jabor, carioca nascido em 1940, é cineasta,
jornalista, técnico de som, crítico de teatro, roteirista, diretor de curtas e
longas metragens, apresentador de tevê.
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Assisti horrorizado à facilidade com que dois sujeitos cobertos de suspeitas em
julgamento conseguiram destruir em minutos a medida provisória para modernizar
nossos portos. Não tenho espaço para exibir a longa lista de irregularidades de
que são acusados os deputados Garotinho e Eduardo Cunha. Eram amigos coloridos
e deixaram sua marca na paisagem política do Rio: de Furnas, Cehab, Cedae,
Telerj, hidrelétricas, Propinoduto, ONGs sem endereço até o célebre escândalo
de milhões de fraldas geriátricas, lembram? Agora são inimigos e, no vexame na
Câmara outro dia (conscientemente ou não) conseguiram invalidar uma das mais
importantes medidas que o governo tenta para nosso crescimento. Na briga, os
dois se xingaram muito, e os dois tinham razão. Vejam as fichas dos dois no
Google. Estudar suas vidas políticas explica bem o Brasil. Há séculos, homens
como esses impedem o desenvolvimento do país e transformam o Poder Legislativo
no maior inimigo do povo. Aliás, nossa miséria não se explica pelos arcaicos
“culpados” tradicionais: imperialismo e latifúndio, como quer a velha ideologia
simplista. Para entendermos o horror que nos envolve, temos de analisar as
classes dominantes, a estrutura patrimonialista do país, a formação torta do
Estado, a tradição histórica de nosso egoísmo. Livros e filmes devem ser feitos
mostrando como nós mesmos construímos nosso atraso. Parafraseando Nelson
Rodrigues: “Nossa miséria não se improvisa; é uma obra de séculos”. Continue lendo...
Transformar a miséria em bandeira política, sem nos incluirmos nela, é uma
atitude miserável. A miséria está nas emendas do orçamento, está na sordidez do
sistema eleitoral, na falsa compaixão dos populistas, nos ideólogos chavistas
preparando o novo gigantismo do Estado disfarçado de “desenvolvimentismo
nacionalista", nas caras cínicas e “lombrosianas” dos ladrões
congressistas, está na Lei arcaica e sem reformas, está na atitude gelada dos
juristas impassíveis , está nos garotinhos na rua e nos garotinhos da política.Temos de entender como a miséria está “dentro” de todos nós. Para nós, os bacanas, a miséria é apenas um incômodo “existencial”, uma sujeira na paisagem.
Há alguns anos, tolerávamos tristemente a miséria, desde que ela ficasse longe, quieta, sem interferir na santa paz de nosso escândalo. A miséria tinha quase uma... “função social”.
No entanto, ela é uma construção minuciosa por um sistema complexo. A miséria não é absurda, é uma produção.
A trágica doença brasileira continua intacta, a não ser na propaganda oficial e no papo. As reformas essenciais que qualquer governo moderno conhece nunca foram realizadas e não serão — está ficando claro. O conservadorismo ideológico do PT e o pior fisiologismo do país não permitirão, de mãos dadas na aliança reacionária que o Lula inventou.
Uma vez, escrevi sobre um menino pobre que fazia malabarismo na rua, diante de meu carro, e muitos se emocionaram, em cartas e e-mails. Tive uma sensação de culpa por fazer sucesso com a miséria dos outros. De certa forma, eu lucrei. O menininho malabarista (onde estará ele agora?) enobreceu-me. Ou seja, a miséria me deu assunto e lucro. Ali, no carro blindado, diante do menino, eu fazia parte da miséria. Não basta sofrermos com o “absurdo” da miséria; é preciso explicá-la.
Com a indústria de armas, as drogas,. a internet, a miséria foi tocada pela evolução do capitalismo. A violência é até uma trágica “modernização” da miséria. Ninguém sabe o que fazer com a neomiséria; por isso, a invenção das UPPs foi tão oportuna e original diante do óbvio. Hoje, a miséria é grande demais para ser erradicada — temos de incorporá-la. Temos de conviver com ela, pois também somos miseráveis na alma, em nossa amarga alegria, em nossa ignorância política, em nossas noites vazias nos bares, em síndromes de pânico, no narcisismo deslavado entre as celebridades, nas liberdades irrelevantes. A miséria está até na moda — vejam este texto de um catálogo “fashion”:
“Use uma calça bacana, toda desgastada, bata na calça com martelo, dê uma ralada no asfalto, atropele seu jeans, passe por cima dele com o carro. A moda pede peças puídas, como ficam depois de um ataque das traças ou baratas. E, se você tem algo a dizer sobre a vida, diga com sua camiseta, nas estampas com frases no peito...”
Somos vítimas da miséria pelo avesso, porque poderíamos ter um país muito melhor se fôssemos mais generosos. Menos egoísmo seria bom para o “mercado”. Mas a “tigrada” do poder só pensa a curto prazo.
Antes, só falava de miséria quem não era miserável, em “fome”, quem comia bem. Agora, os miseráveis já falam de nós.
Assim como a corrupção nos abre os olhos, denunciando a urgente reforma do poder judiciário paralítico, a violência prova o fracasso da administração pública. Não resolveremos nada. Os miseráveis é que vão fazer isso, aos poucos. E estão se expressando em movimentos de afirmação das periferias. Os marginalizados vão sair do horror para serem fontes de expressão vital. A miséria está nos educando.
E o problema é que ninguém sabe o que fazer. Cada vez mais o mundo vive a dor de um “mal” difuso e sem culpados claros. Zygmunt Bauman, o filósofo polonês, estudioso da sociedade contemporânea, criador do conceito de “modernidade líquida”, diz coisas excelentes em um diagnóstico do mundo atual.
Mas, como sempre, na hora das “soluções”, surge a impotência cheia de esperanças. O que fazer?
Aí, ele propõe três caminhos para diminuir a pobreza no mundo:
1- conscientizar as pessoas de que crescimento econômico tem limites; 2- mudar a lógica social dos governos, para que os cidadãos enriqueçam suas vidas por outros meios que não apenas bens materiais; e 3- convencer os capitalistas a distribuir lucros não apenas segundo critérios financeiros, mas em função de benefícios sociais e ambientais.
Ótimo! Boa ideia! Agora só falta combinar com Wall Street e psicanalisar os governantes das nações poderosas.
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