CAETANO SCANNAVINO é coordenador do Projeto Saúde e Alegria e integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais. |
Por ironia do destino, os momentos mais decisivos para o
fechamento do negócio calharam de acontecer entre o período das campanhas
eleitorais e a virada de ano (e das gestões municipais, como no caso de
Santarém, saindo o PT e entrando o PSDB), o que contribuiu para morosidade dos
processos.
Em dezembro passado, os instáveis holandeses decidiram não
vender mais o barco. A antiga administração de Santarém deliberou então pela
desapropriação e obteve sinalização favorável do Ministério da Saúde, embora em
comunicado datado de 31/12/12 às 00:05:23, já no marco das festividades de fim
de ano.
Com as mudanças dos governos municipais, os processos em
curso foram paralisados, pois dependiam de deferimento das novas gestões para
seguirem adiante.
No início de 2013,
a Prefeitura de Santarém fechou acordo para o aluguel do
Abaré com a TDH, passando a pagar à organização holandesa pela disponibilidade
da embarcação por apenas dez dias mensais, ou seja, somente para o período de
atendimentos na margem esquerda do Tapajós -comunidades do seu município-, excluindo
as localidades do outro lado do rio, pertencentes a Belterra e Aveiro.
Diante disso, mais de 5 mil ribeirinhos da margem direita do
Tapajós se encontram sem assistência desde o ano passado. Por serem municípios
menores, ele não têm condições financeiras para bancar os custos de aluguel, o
que levou Belterra a negar a proposta de locação do barco também oferecida a
ela pelos holandeses no início de 2013. Continue lendo...
O acordo pode agravar ainda mais a situação. Além da
suspensão no avanço das tratativas com Brasília para aquisição do barco,
Santarém corre sérios riscos de perder as verbas federais que vêm sendo
repassadas há mais de dois anos através da Portaria Ministerial do Tapajós, que
tem abrangência intermunicipal e exige por lei o mínimo de 24 dias-campo/mês,
período superior aos dias do aluguel acertado.
Como previsto, aconteceram novas manifestações dos
ribeirinhos, pedindo providências, alinhamento dos municípios e agilidade na
retomada do diálogo com Brasília.
Cenas dos próximos e últimos capítulos: Municípios e
controle social definem o final da novela
A saúde, por mexer com a vida das pessoas, deveria estar
acima de qualquer interesse de grupos ou partidos.
Diante disso, o SUS encontra na novela Abaré um
"case" desafiador em todos os sentidos, seja em torno do modelo
técnico assistencial (que inspirou estratégias diferenciadas para a realidade
amazônica) da universalidade do atendimento, da descentralização dos serviços e
da participação social em seu controle.
As oportunidades ainda abertas, fruto de conquistas ao longo
desses anos todos através do navio-hospital Abaré, dependem exclusivamente de
encaminhamentos e processos decisórios dos atuais entes públicos, assim como da
efetividade das instâncias de controle social, podendo ou não se desdobrar em
um final feliz.
Pode terminar com um guerra de vaidades entre grupos ou
municípios, busca de culpados, mantendo como maiores prejudicados os
ribeirinhos sem atendimentos, cuja saúde não pode esperar.
A janela do ministério se fecharia, com a suspensão da Portaria
2.488/2011 no Tapajós, tornando insustentável os serviços assistenciais onde
tudo começou, um sinal amarelo também para os outros 50 barcos de saúde em vias
de operação pelos interiores de toda Amazônia.
Assim como pode terminar com o bom senso e a soma de
esforços de todos os atores deste elenco social -inclusive a TDH- para
concretizar a aquisição em definitivo do Abaré, já que o Ministério da Saúde
ainda aguarda a deliberação dos municípios.
Com isso, resgata-se o projeto para diversificação dos serviços
e programas (barco-escola, saúde do trabalhador etc), agregando novos parceiros
potenciais (governo do Estado, órgãos de ensino e pesquisa etc), transformando
o Abaré em um polo difusor de boas práticas para as demais unidades de Saúde
Fluvial da Amazônia.
Seria um exemplo também de postura política de nossos
gestores, que liderariam e sacramentariam o polo Tapajós como referência
nacional em saúde ribeirinha.
Mas, no caso desta Novela Abaré, quem a escreve não decide seu final.
Mas, no caso desta Novela Abaré, quem a escreve não decide seu final.
LEIA O ARTIGO COMPLETO AQUI - NAVIO-HOSPITAL ABARÉ: UMA NOVELA SEM FIM
Por Caetano Scannavino
O Projeto
Saúde e Alegria (PSA), ONG sediada em Santarém (PA), sempre procurou
somar esforços a políticas públicas para assegurar o direito à saúde e reduzir
os níveis de exclusão das populações ribeirinhas de áreas remotas da Amazônia.
Na busca pela construção de um modelo de atenção básica
resoluto e adaptado, um passo foi dado, em 2006, com a implantação do
navio-hospital Abaré, que viabilizou o acesso regular a serviços assistenciais
para 15 mil ribeirinhos de mais de 70 comunidades das duas margens do Tapajós,
nas zonas rurais dos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro.
Capítulo 1: O que pensávamos ser o mais difícil: a
construção de uma solução de saúde básica para áreas remotas da Amazônia
Implantado pelo PSA em parceria com as prefeituras e apoio
da ONG holandesa Terre Des Hommes (TDH), o Abaré funcionou nos moldes de um PSF
(Programa Saúde da Família) itinerante, com serviços de saúde da criança, saúde
oral, imunizações, pré-natal, PCCU, planejamento familiar, atendimentos
médicos, ambulatoriais, exames de rotina e pequenas cirurgias.
Além de médicos, dentistas e profissionais de enfermagem,
uma equipe de arte-educadores acompanhava as rodadas, realizando dinâmicas
ludo-pedagógicas de mobilização e prevenção, como ações integradas e
complementares às assistenciais.
Ao longo dos anos, os esforços conjuntos começaram a dar
resultados, com uma rotina de retornos a cada 40 dias, mais de 20 mil
procedimentos de saúde/ano, obtendo significativa melhora dos indicadores e
resolutividade de 93%: somente 7
a cada 100 pacientes sendo encaminhados, em média, aos
centros hospitalares urbanos.
Essa iniciativa ganhou visibilidade além das fronteiras
tapajônicas, com diversos prêmios, publicações, visitantes ilustres, como o
Príncipe Charles, ministros, governadores, entre outras autoridades, que
reconheceram, no polo santareno, a capacidade de articular os setores público,
privado e a sociedade civil na formulação de soluções concretas passíveis
também de replicação em outras regiões.
Capítulo 2: A utopia vira realidade: o modelo de
saúde construído é transformado em política pública
Em 2010,
a experiência foi reconhecida como política pública
nacional, tornando o polo Tapajós referência em boas práticas de saúde
ribeirinha. Ótima notícia para enfrentar o difícil desafio assistencial nas
zonas rurais amazônicas, com municípios do tamanho de países, grandes
distâncias, populações dispersas e custos logísticos superiores aos padrões
nacionais até então oferecidos pelo SUS.
A política de Saúde da Família Fluvial -lançada por meio da
Portaria 2.191 de 3 de agosto de 2010, e aprimorada no ano seguinte através da
Portaria 2.488 de 21 de outubro de 2011- instituiu novos arranjos e critérios
para implantação e financiamento de barcos de atendimento a populações remotas
com vistas a apoiar os municípios de toda Amazônia Legal e Pantanal, sua área
de abrangência. Uma grande conquista, pois permitiu disseminar o que se semeou
no Tapajós para outras regiões necessitadas.
Atualmente, mais de 50 novas embarcações assistenciais vêm
sendo implantadas e custeadas com apoio financeiro federal. O primeiro deles
foi o próprio Abaré, que em dezembro de 2010 foi credenciado pelo ministério
como a primeira Unidade Básica de Saúde (UBS) fluvial do país, sendo integrado
ao SUS. A partir daí, os municípios tiveram melhores condições para assumir a
sua gestão, liderada por Santarém, com verbas anuais de R$ 600 mil para o
custeio -padrão previsto na portaria por embarcação.
Desde então, há mais de dois anos, apesar de o Projeto Saúde
e Alegria ter deixado a linha de frente das operações no Tapajós, continuou
apoiando as comunidades no controle social, na educação/prevenção em saúde,
assim como na gestão pública, quando solicitado.
E, com base nos acúmulos e lições aprendidas, passou a se
dedicar na disseminação do modelo de saúde fluvial para outras regiões,
sobretudo nas áreas de abrangência da portaria ministerial. Um exemplo foi a
aquisição, pelo PSA, de um segundo barco, o Abaré II, repassado à gestão
pública para viabilizar os atendimentos junto a mais de 10 mil ribeirinhos da
bacia do rio Arapiuns, também no Baixo-Amazonas.
Capítulo 3: A novela Abaré edição 2012: do Brasil
(também colônia holandesa) ao Brasil emergente
Para o PSA, o Abaré simbolizava o sucesso de um modelo de
saúde cujos ribeirinhos do Tapajós eram também partícipes de sua construção,
tanto que até escolheram e foram responsáveis por seu nome de batismo -Abaré
significa amigo cuidador, em Tupi.
Apesar dos avanços, no começo de 2012, a ONG holandesa TDH,
proprietária do barco, decidiu, de forma abrupta, retirá-lo do Tapajós e
deslocá-lo para outra área, descumprindo assim a expectativa, desde o início,
da parceria pela doação da embarcação à região.
Os rumores indicavam que o Abaré passaria a servir uma outra
região por meio de uma organização do Estado do Amazonas. Nada contra novos
apoios e projetos, desde que somem e não se inviabilizem. O fato é que, sem
barco substituto, sua saída inesperada do Tapajós significava a interrupção dos
atendimentos aos ribeirinhos, que já vinham funcionando por meio de um arranjo
público-privado custeado por verbas federais.
Por mais que se reconheça o apoio determinante da TDH ao
longo dos anos, quando a ONG holandesa deu a impressão de entender o Abaré como
meio de negócio, e não como meio de saúde, a parceria se desfez.
Iniciou-se então uma grande campanha pela permanência da
embarcação - #FicaAbaré-, com manifestações dos ribeirinhos do Tapajós
amplamente apoiadas e debatidas nas mídias, blogs e redes sociais, um exemplo
de exercício efetivo de cidadania, que gerou comoção em toda região, com a
união de comunidades, instituições, municípios e governo federal.
O desdobramento dessa campanha, após intensos embates,
inclusive pelas vias judiciais, tomou rumo por uma solução definitiva com
tratativas iniciadas em meados de 2012 para a compra do Abaré, envolvendo a
Prefeitura de Santarém e os proprietários holandeses, com aval do Ministério da
Saúde.
Recursos federais foram assegurados para sua aquisição e
repasse à Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) de Santarém. Com isso, além da
continuidade estável da assistência no Tapajós, abria-se um enorme potencial
para diversificação dos serviços, incorporação de novos parceiros e programas,
incrementando o papel social da embarcação.
Negociações vinham avançando até o final do ano passado no
sentido de transformá-lo também em um barco-escola, com o envolvimento de
universidades como a Uepa e USP, um indutor para interiorização da medicina na
Amazônia, na forma de um laboratório e polo difusor de boas práticas para
replicação nas outras regiões contempladas pela Portaria 2.488/2011, entre
outras benesses de interesse estratégico do Ministério da Saúde.(Folha de São Paulo)
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