Roberto Pompeu de Toledo nasceu em São Paulo , em 1944 é um
jornalista brasileiro. desde 1966. Trabalhou por pouco tempo na Rádio
Bandeirantes e depois na Rádio Eldorado e na Revista Veja.
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A revolução falou grosso, na semana passada, na Venezuela. O
ministro do Comércio, Alejandro Fleming, cobriu-se da mais heróica das faces,
ajustou a mais resoluta das vozes, e anunciou: "A revolução trará ao país
o equivalente a 50 milhões de rolos de papel higiênico!". Depois do
açúcar, dos laticínios, das carnes, da farinha de milho (com a qual se faz a
sagrada arepa, o pão de cada dia na mesa do venezuelano), do sabonete e da
pasta de dentes, a crise de desabastecimento que assola o país chegara ao vaso sanitário.
Não se alvorocem os imprudentes, porém. La revolución, enérgica e vigilante,
fará chover papel higiênico, abarrotará com ele as prateleiras, fartará o mais
exigente intestino, "para que nosso povo se tranquilize"" —
acrescentou o ministro — "e compreenda que não se deve deixar manipular
pela campanha mediática de que há escassez". Faltar papel higiênico não é
de chamar atenção, na quadra que atravessa a Venezuela. Também não surpreendem
nem o anúncio de que haverá importação do produto, nem o vezo de negar o
desabastecimento. Digno de nota é o ministro invocar o santo nome da
"revolução". Não é o simples e reles "governo" que vai
importar papel higiênico. É la revolución!
Já faz dois séculos e meio que a palavra "revolução" paira, como sonho ou como pesadelo, sobre os processos políticos, mundo afora. Os eventos fundadores do fenômeno são a Revolução Americana e, principalmente, a Francesa. Com os franceses, "revolução" virou sinônimo de refundação do mundo. Tanto eles acreditaram nisso que revogaram o antigo calendário e instituíram um novo. Impunha-se que o tempo começasse de novo, do zero. Continue lendo...
O caráter refundador
da "revolução" radicalizou-se com as revoluções comunistas, no século
XX, a começar da Bolchevique. E ganhou acentos místicos com a promessa de
criação de um mundo novo, marcado pela paz, pela generosidade e pela
fraternidade, e povoado por um "homem novo". "Revolução"
passava a equivaler a purgação dos pecados e renascimento. O marxismo ateu
irmanava-se às religiões ao prometer um futuro de bem-aventurança, e ganhava
delas ao localizá-lo não no Céu, mas na Terra mesmo.Já faz dois séculos e meio que a palavra "revolução" paira, como sonho ou como pesadelo, sobre os processos políticos, mundo afora. Os eventos fundadores do fenômeno são a Revolução Americana e, principalmente, a Francesa. Com os franceses, "revolução" virou sinônimo de refundação do mundo. Tanto eles acreditaram nisso que revogaram o antigo calendário e instituíram um novo. Impunha-se que o tempo começasse de novo, do zero. Continue lendo...
O problema é que as revoluções, segundo indicaram os fatos, nestes últimos dois séculos e meio, abrigam em si o germe da destruição. Não demorou e os franceses retornaram ao velho e bom calendário gregoriano. Era o reengate com o tempo antigo. Dali para a frente, a história da França é uma contínua demonstração de que a força da continuidade supera a da ruptura. Nas décadas finais do século XX veio o colapso dos regimes comunistas, expondo a fragilidade das revoluções que prometiam. Avançaram de modo mais consistente, inclusive na direção da igualdade, regimes que, em vez de prometer uma nova aurora, operaram na rotina realista das miudezas do dia a dia e das medidas tópicas, no quadro favorável que só o respeito à lei e a solidez das instituições proporcionam.
Para voltar à ideia de calendário, o germe que destrói as revoluções é a ambição de atalhar o tempo. As revoluções socialistas, ao se proporem a revogar o capitalismo, investem contra um tempo histórico que é o do capitalismo. Não é de admirar que o "processo revolucionário" da Venezuela, assim como outros, antes dele, tenha resultado em desabastecimento. Produção de bens é algo que o capitalismo sabe fazer. O socialismo, como o comprova o legado dos países que o experimentaram, não sabe. La revolución, na Venezuela, boicota a iniciativa privada e demoniza o modo de produção capitalista. Tudo bem se houvesse algo para pôr no lugar. Não há.
Por essas e outras o conceito de "revolução" soçobra, neste século XXI. Menos na América Latina, e em especial nesta Venezuela surrealista, onde os pajariios trazem recados dos mortos. O ministro do Comércio informou que o consumo mensal de papel higiênico no país é de 125 milhões de rolos. Não há "deficiência na produção", acrescentou, mas sim um momento de "sobre demanda" que, para ser satisfeita, exige "uns 40 milhões adicionais". Impressiona o rigor estatístico, num país em que poucas estatísticas funcionam, mas o ministro não esclarece o que teria determinado a tal "sobredemanda". Uma súbita aceleração dos processos digestivos do povo venezuelano? Seja como for, la revolución cuidará disso. E assim o conceito de revolução, graças à contribuição venezuelana, passa de um sentido a outro, tão diferentes, da palavra "escatologia" — do sentido de aurora de um profético tempo novo ao de estudo dos excrementos.
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