Arnaldo Jabor, carioca nascido em 1940, é
cineasta, jornalista, técnico de som, crítico de teatro, roteirista, diretor de
curtas e longas metragens, apresentador de tevê. |
"Doutora, eu procurei a psicanálise porque tenho tido
pesadelos: sonho que morri assassinado por mim mesmo, que estou preso com
traficantes estupradores. Não mereço isso, eu, que sempre assumi minha condição
de corrupto ativo e passivo (sem veadagem... claro). Não sou um ladrão de
galinhas, mas já roubei galinhas do vizinho e até hoje sinto o cheiro das
penosas que eu agarrava. Ha ha ha... Mas hoje em dia, doutora, não roubo mais
por necessidade; é prazer mesmo. Estou muito bem de vida, tenho sete fazendas reais
e sete imaginárias, mando em cidades do Nordeste, tenho tudo, mas confesso que
sou viciado na adrenalina que me arde no sangue na hora em que a mala preta voa
em minha direção, cheia de dólares, vibro quando vejo os olhos covardes do
empresário me pagando a propina, suas mãos trêmulas me passando o tutu,
delicio-me quando o juiz me dá ganho de causa, ostentando honestidade e finge
não perceber minha piscadela marota na hora da liminar comprada (está entre US$
30 e50 mil hoje).
Como, doutora? Se me sinto "superior" assim? Bem, é verdade... Adoro a sensação de me sentir acima dos otários que me "compram" - eles se humilhando em vez de mim.
Roubar me liberta. Eu explico: roubar me tira do mundo dos "obedientes" e me faz "excepcional" quando embolso uma bolada. Desculpe... A senhora é mulher fina, coisa e tal, mas, adoro sentir o espanto de uma prostituta, quando eu lhe arrojo US$ mil sobre o corpo e vejo sua gratidão acesa, fazendo-a caprichar em carícias. É uma delícia, doutora, rolar, nu, em cima de notas de cem dólares na cama, de madrugada, sozinho, comendo chocolatinhos do frigobar de um hotel vagabundo, em uma cidade onde descolei a propina de um canal de esgoto superfaturado. Gosto da doce volúpia de ostentar seriedade em salões de caretas que me xingam pelas costas, mas que me invejam pela liberdade cínica que imaginam me habitar. Continue lendo...
Suas mulheres me olham excitadas, pensando nos brilhantes que poderiam ganhar
de mim, viril e sorridente - todo bom ladrão é simpático. A senhora não tem
ideia aí, sentada nesta poltrona do Freud, do orgulho que sinto, até quando
roubo verbas de remédios para criancinhas, ao dominar a vergonha e
transformá-la na bela frieza que constrói o grande homem.Como, doutora? Se me sinto "superior" assim? Bem, é verdade... Adoro a sensação de me sentir acima dos otários que me "compram" - eles se humilhando em vez de mim.
Roubar me liberta. Eu explico: roubar me tira do mundo dos "obedientes" e me faz "excepcional" quando embolso uma bolada. Desculpe... A senhora é mulher fina, coisa e tal, mas, adoro sentir o espanto de uma prostituta, quando eu lhe arrojo US$ mil sobre o corpo e vejo sua gratidão acesa, fazendo-a caprichar em carícias. É uma delícia, doutora, rolar, nu, em cima de notas de cem dólares na cama, de madrugada, sozinho, comendo chocolatinhos do frigobar de um hotel vagabundo, em uma cidade onde descolei a propina de um canal de esgoto superfaturado. Gosto da doce volúpia de ostentar seriedade em salões de caretas que me xingam pelas costas, mas que me invejam pela liberdade cínica que imaginam me habitar. Continue lendo...
Sei muito bem os gestos rituais da malandragem brasileira: sei fazer imposturas, perfídias, tretas, sei usar falsas virtudes, ostentar dignidade em CPIs, dou beijos de Judas, levo desaforo para casa sim, sei dar abraços de tamanduá e chorar lágrimas de crocodilo...
Eu já declarei de testa alta na Câmara: "Não sei nem imagino como esses milhões de dólares apareceram em minha conta na Suíça, apesar desses extratos todos, pois não tenho nem nunca tive conta no exterior!". Esse grau de mentira é tão íntegro que deixa de ser mentira e vira uma arte.
Doutora, no Brasil há dois tipos de ladrões de colarinho branco: há o ladrão "extensivo" e o "intensivo".
Não tolero os ladrões intensivos, os intempestivos sem classe... Faltam-lhes elegância e "finesse" Roubam por rancor, roubam o que lhes aparece na frente, se acham no direito de se vingar de passadas humilhações, dores de corno, porradas na cara não revidadas, suspiros de mãe lavadeira.
Eu, não. Eu sou cordial, um cavalheiro; tenho paciência e sabedoria, comecei pouco a pouco, como as galinhas que roubei na infância, que de grão em grão enchiam o papo... Eu sou aquele que vai roubando ao longo da vida política e, ao fim de décadas, já tem Renoirs na parede, iates, helicópteros, esposa infeliz (não sei por que, se dou tudo a ela) e infelizmente filhos estroinas... (mandei estudarem na Suíça e não adiantou).
Eu adquiri uma respeitabilidade altaneira que confunde meus inimigos, que ficam na dúvida se me detestam ou admiram. No fundo, eu me acho mesmo especial; não sou comum.
Perto de mim, homens como os mensaleiros amadores foram meros cleptomaníacos... Sou profissional e didático... Considero-me um técnico, um cientista da corrupção nacional...
Olhe para mim, doutora. Eu estou no lugar da verdade. Este país foi feito assim, na vala entre o público e o privado. Há uma grandeza insuspeitada na apropriação indébita, florescem ricos cogumelos na lama das "maracutaias".
Ouso mesmo dizer que estou até defendendo uma cultura! São séculos de hábitos e cacoetes sagrados que formam um país. A senhora sabe o que é a beleza do clientelismo ibérico, onde um amigo vale mais que a dura impessoalidade de uma ética vitoriana?
A amizade é mais importante que esta bobagem de interesse nacional! O que meus inimigos chamam de irresponsabilidade e corrupção do Congresso é a resistência da originalidade brasileira, é a preservação generosa do imaginário nacional!
A bosta não produz flores magníficas? O que vocês chamam de "roubalheira", eu chamo de "progresso". Não o frio progresso anglo-saxônico, mas o doce e lento progresso português que formou nossa tolerância, nossa ambivalência entre o público e o privado.
Eu sempre fui muito feliz... Sempre adorei os jantares nordestinos, cheios de moquecas e sarapatéis, sempre amei as cotoveladas cúmplices quando se liberam verbas, os cálidos abraços de famílias de máfias rurais... A senhora me pergunta por que eu a procurei?
Tudo bem; vou contar. Outro dia, um delegado que comprei me convidou para ver uma execução. Topei, por curiosidade; podia ser uma experiência interessante na minha trajetória existencial. Era um neguinho traficante que levaram para um terreno baldio, até meio pé de chinelo. Ele implorava quando lhe passaram o fio de náilon no pescoço e apertaram devagar até ele cair estrangulado, bem embaixo de uma placa de financiamento público. Na hora, até me excitei; mas quando cheguei em casa, com meus filhos vendo "High School Musical" na TV, fui tomado por este mal-estar que vocês chamam de "sentimento de culpa"...
Por isso, doutora, preciso que a senhora me cure logo... Tem muita verba pública aí, muita emenda no orçamento, empreiteiros me ligando sem parar... Tenho de continuar minha missão, doutora..."
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