Arnaldo Jabor, carioca nascido em 1940, é cineasta,
jornalista, técnico de som, crítico de teatro, roteirista, diretor de curtas e
longas metragens, apresentador de tevê.
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Escrevo-lhe estas mal traçadas linhas para comemorar seu aniversário de 100
anos. Sei que me condenaria por este começo de artigo, pois você lutava contra
os lugares-comuns da imprensa. Uma vez me disse que demitiria qualquer redator
que começasse um texto com "Natal, Natal, bimbalham os sinos" ou
então "Tirante, é obvio..." ou ainda "O comboio ficou reduzido a
um montão de ferros retorcidos". Sei que, odiando lugares-comuns, você
estaria rindo das homenagens que lhe prestam - velhinho com 100 anos sendo
tratado como um ser especial, logo você que sempre quis ser um homem comum, sem
lugar claro na vida. Você não tinha nada de 'especial', nenhum brilho
ostensivo; você não falava muito e tinha a melancolia que lhe dava o posto de
observação privilegiado para ver a vida correndo à sua volta 'aos borbotões, a
vida ávida e passageira' (perdoe-me de novo...)
A primeira vez que nos vimos foi por volta de 1975, quando lhe pedi autorização para usar Ai de ti, Copacabana como título de meu filme Tudo Bem, que acabei não usando; mas, bem antes disso, eu tinha visto você de longe no Antonio's, nosso bar mitológico, brigando com o Di Cavalcanti ("para de pintar mulatas que você não come!", e tinha lido crônicas geniais como Um Pé de Milho - você observando um grão virar pendão em seu jardim, você, um feliz fazendeiro da Rua Júlio de Castilhos.
Vi você vendo o outono chegar a Botafogo dentro de um bonde, vi você vendo as estações do ano voando sobre Ipanema (desculpe as aliterações...), vi que você via a cidade por baixo das casas e edifícios, a praia dos tatuís hoje sumidos, o vento terral soprando nas praças, senti que você tinha uma saudade não sei de que, uma nostalgia repassava suas crônicas, como em Tom Jobim, em Vinicius, numa época em que a literatura era importante, em que o Rio tinha a placidez baldia de uma paisagem vista de dentro; lembro-me de você espinafrando a destruição de Ipanema pelos bombardeios criminosos de Sergio Dourado e Gomes de Almeida Fernandes, os dois malfeitores que exterminaram a zona sul em poucos anos. "Eu sou do tempo em que as geladeiras eram brancas e os telefones pretos" - você batia na mesa - "e eles destruíram tudo!"
Suas frases ecoam na minha cabeça, não por alguma profundidade ambiciosa, mas justamente por uma 'superficialidade' buscada, como uma conversa de amigos íntimos. Não vou citar nada, mas estou no Rio, em frente do 'velho oceano' (ah! Cuidado com o 'rocambole'!...), são 6 da tarde e vejo ao longe as ilhas Cagarras envolvidas numa névoa roxa, naquela hora em que a linha do horizonte se une ao céu, com o mar imóvel, sólido e cinzento. Continue lendo...
A segunda vez que lhe vi foi em sua casa, numa festa pequena para amigos onde
eu entrei sem ar (quem me levou?). Ali na varanda em frente de Ipanema estavam
homens que eu temia - ídolos de minha juventude angustiada. Ali estavam tomando
uísque o Vinicius de Moraes, você, Fernando Sabino e minha paixão literária
máxima: João Cabral de Mello Neto, o gênio da poesia. Danuza Leão também
estava. Todo mundo meio de porre, principalmente o João Cabral, que bebia mal e
implicava com o Vinicius numa agridoce provocação, criticando-o por ter
abandonado a poesia pela música popular. João Cabral odiava música, que lhe
doía na cabeça como um barulho, estragando seu pensamento obsessivo, piorando
suas horrendas dores de cabeça. João Cabral sacaneava: "Que negócio de
'garota de Ipanema', Vina, você é poeta!". O Vinicius ficava puto, mas
respondia conciliatório: "Para com isso, Joãozinho; deixa isso pra
lá!". O Cabral insistia: "Que tonga da milonga do caburetê que
nada...", a ponto de Danuza ralhar com ele: "Deixa de ser chato, João
Cabral!". Lembra disso, Rubem? Imagine minha emoção de jovem tiete ao
assistir àquela briguinha íntima e mixa entre minhas estrelas. A honraria me
sufocava. Você ria dos dois ali no seu jardim suspenso, como um operário de
outra construção - crônicas sem ambição e por isso mesmo muito além de teorias.A primeira vez que nos vimos foi por volta de 1975, quando lhe pedi autorização para usar Ai de ti, Copacabana como título de meu filme Tudo Bem, que acabei não usando; mas, bem antes disso, eu tinha visto você de longe no Antonio's, nosso bar mitológico, brigando com o Di Cavalcanti ("para de pintar mulatas que você não come!", e tinha lido crônicas geniais como Um Pé de Milho - você observando um grão virar pendão em seu jardim, você, um feliz fazendeiro da Rua Júlio de Castilhos.
Vi você vendo o outono chegar a Botafogo dentro de um bonde, vi você vendo as estações do ano voando sobre Ipanema (desculpe as aliterações...), vi que você via a cidade por baixo das casas e edifícios, a praia dos tatuís hoje sumidos, o vento terral soprando nas praças, senti que você tinha uma saudade não sei de que, uma nostalgia repassava suas crônicas, como em Tom Jobim, em Vinicius, numa época em que a literatura era importante, em que o Rio tinha a placidez baldia de uma paisagem vista de dentro; lembro-me de você espinafrando a destruição de Ipanema pelos bombardeios criminosos de Sergio Dourado e Gomes de Almeida Fernandes, os dois malfeitores que exterminaram a zona sul em poucos anos. "Eu sou do tempo em que as geladeiras eram brancas e os telefones pretos" - você batia na mesa - "e eles destruíram tudo!"
Suas frases ecoam na minha cabeça, não por alguma profundidade ambiciosa, mas justamente por uma 'superficialidade' buscada, como uma conversa de amigos íntimos. Não vou citar nada, mas estou no Rio, em frente do 'velho oceano' (ah! Cuidado com o 'rocambole'!...), são 6 da tarde e vejo ao longe as ilhas Cagarras envolvidas numa névoa roxa, naquela hora em que a linha do horizonte se une ao céu, com o mar imóvel, sólido e cinzento. Continue lendo...
Lembro que, em dada hora, o João Cabral me segredou (Oh, suprema alegria!...): "O mal que Fernando Pessoa fez à poesia foi imenso." Tremi aliviado, pois secretamente sempre achei a mesma coisa - aqueles delírios portugueses lamentosos e subfilosóficos sempre me encheram. (Por favor: cartas me esculachando para a redação).
Que pena que não lhes conheci mais intimamente, pois tinha medo de vocês - não me achava digno. Naquela época (início dos 70) havia tempo e energia para se discutir literatura. Hoje, neste tempo digital e veloz, ou temos o derrame de besteiras nas redes sociais ou porcarias de autoajuda nas listas de best-sellers.
Só. Naquela época havia o consolo de um sentido, mesmo sob a ditadura, que até enfurecia nossa fome de verdade.
Tenho saudades das polêmicas sobre 'forma', sobre 'mensagens' até caretas, tenho saudades 'das velhas perguntas e das velhas respostas' - como escreveu Beckett.
A última vez que nos vimos, Rubem, foi numa noite chuvosa em que saímos do Antonio's meio de porre e eu lhe dei uma carona até a Rua Barão da Torre. No carro, você me contou, rindo com a voz pastosa, que aparecera uma garota de uns 18 anos em sua casa que resolveu se apaixonar por você e que ia ao seu jardim para 'dar ao mestre'. "Não sei o que ela vê em mim, mas vou comendo..." Adorei a confidência, mas vi que você estava mais velho e cansado, mais bêbado do que eu. Ajudei você a sair do carro até a portaria de sua pirâmide, onde deixei você, meio grato e meio irritado pela ajuda.
Depois, você morreu. Soube emocionado que você contratou a própria cremação - foi a São Paulo e o funcionário perguntou: "Pra quem é?" "Para mim mesmo", respondeu você, poeta macho. Por isso, quando vejo esse papo todo de 'fazendeiro do ar', de 'poeta do cotidiano', imagino que você diria: "Não me encham o saco. Sou apenas um pobre homem de Cachoeiro de Itapemirim..."
Grande abraço e parabéns pelos 100 anos.
A.J.
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