Da janela tudo parecia igual. Na rua, a mudança era grande.
Os carros não tinham pilotos. O ar parece limpo. As pessoas, sujas. E
magérrimas. Dava para confundi-las com moradores de rua.
Ele me conta das mudanças ocorridas nas três últimas décadas. Quase toda instituição teve de se reformular depois que surgiram a energia gratuita e a nanotecnologia, limpando o ar, reciclando o lixo e gerando um volume quase infinito de recursos.
Nada mudou tanto quanto a medicina. Sangue, ossos e órgãos artificiais crescem nos laboratórios, são adaptados ao DNA de seus usuários e trocados desapegadamente em funilarias humanas. Privadas identificam doenças e previnem cânceres. Neurocosméticos rejuvenescem a pele. Teme-se a eugenia, armas e drogas perigosas.
O papagaio, fui descobrir, me vigiava. Visitante de outra época, sem histórico, eu era imprevisível.
Em 2043 boa parte da vida pessoal é monitorada, não se fala em privacidade. Os espaços comuns são de propriedade privada, toda comunicação é registrada e interpretada.
Muito do que chamam de memória é só armazenamento sem reflexão. Infraestruturas lembram de tudo, e como não esquecem, não perdoam. Perdidas, muitas pessoas parecem sós, frágeis, infantilizadas, formatadas por mecanismos de busca e objetos de consumo.
Alguns, cansados das inconsistências humanas, recorrem a relações artificiais com máquinas. Do sexo enriquecido aos bebês que nunca crescem, tudo é artificialmente sereno.
O Mundo Novo parece tão Admirável quanto assustador. No "Tec", que tem 60 anos, continuamos a analisar o impacto da tecnologia no que teimamos em chamar de natureza humana.
Elas aparentam ter uns 30 anos, me surpreendi ao saber que tinham mais de 70. Estavam
na flor da idade, pois a expectativa de vida ultrapassava os 120.
Meu intérprete diz que a magreza contribuía para a longevidade e que a "sujeira" era biotecnologia, explorando micro-organismos na pele e cabelo e protegendo-os de agentes nocivos como álcool e sabões. Ele é um robô, tem a forma de um papagaio. Pousado no ombro, me faz parecer um pirata.
Apesar de ridículo, não me deixariam sair sem ele -por segurança, disseram, mesmo que o crime físico estivesse quase erradicado por ali.
"Come-se muito pouco, alguns nem dormem", continua ele, enquanto eu comia um prato com cheiro e gosto estranhos, que parecia lasanha de micro-ondas.
Era carne sintética, tecnologia que multiplicou a produção de alimentos para atender os 9 bilhões. Boa parte da comida era geneticamente modificada, reciclada ou criada em laboratório.
Disseram que era nutritiva e livre de toxinas, o que pareceu bom demais para ser verdade.
É difícil descrever o impacto de tantas máquinas inteligentes, onipresentes, no cotidiano. De roupas climatizadas e sempre limpas a fachadas de prédios mutantes, tudo parece piscar e pular. Continue lendo...
Não há computadores, celulares ou óculos. O software acompanha seu usuário na
forma de "foglets", névoas de nanomáquinas que se configuram conforme
a necessidade das pessoas. Não me acostumei com elas, por isso o papagaio.Meu intérprete diz que a magreza contribuía para a longevidade e que a "sujeira" era biotecnologia, explorando micro-organismos na pele e cabelo e protegendo-os de agentes nocivos como álcool e sabões. Ele é um robô, tem a forma de um papagaio. Pousado no ombro, me faz parecer um pirata.
Apesar de ridículo, não me deixariam sair sem ele -por segurança, disseram, mesmo que o crime físico estivesse quase erradicado por ali.
"Come-se muito pouco, alguns nem dormem", continua ele, enquanto eu comia um prato com cheiro e gosto estranhos, que parecia lasanha de micro-ondas.
Era carne sintética, tecnologia que multiplicou a produção de alimentos para atender os 9 bilhões. Boa parte da comida era geneticamente modificada, reciclada ou criada em laboratório.
Disseram que era nutritiva e livre de toxinas, o que pareceu bom demais para ser verdade.
É difícil descrever o impacto de tantas máquinas inteligentes, onipresentes, no cotidiano. De roupas climatizadas e sempre limpas a fachadas de prédios mutantes, tudo parece piscar e pular. Continue lendo...
Ele me conta das mudanças ocorridas nas três últimas décadas. Quase toda instituição teve de se reformular depois que surgiram a energia gratuita e a nanotecnologia, limpando o ar, reciclando o lixo e gerando um volume quase infinito de recursos.
Nada mudou tanto quanto a medicina. Sangue, ossos e órgãos artificiais crescem nos laboratórios, são adaptados ao DNA de seus usuários e trocados desapegadamente em funilarias humanas. Privadas identificam doenças e previnem cânceres. Neurocosméticos rejuvenescem a pele. Teme-se a eugenia, armas e drogas perigosas.
O papagaio, fui descobrir, me vigiava. Visitante de outra época, sem histórico, eu era imprevisível.
Em 2043 boa parte da vida pessoal é monitorada, não se fala em privacidade. Os espaços comuns são de propriedade privada, toda comunicação é registrada e interpretada.
Muito do que chamam de memória é só armazenamento sem reflexão. Infraestruturas lembram de tudo, e como não esquecem, não perdoam. Perdidas, muitas pessoas parecem sós, frágeis, infantilizadas, formatadas por mecanismos de busca e objetos de consumo.
Alguns, cansados das inconsistências humanas, recorrem a relações artificiais com máquinas. Do sexo enriquecido aos bebês que nunca crescem, tudo é artificialmente sereno.
O Mundo Novo parece tão Admirável quanto assustador. No "Tec", que tem 60 anos, continuamos a analisar o impacto da tecnologia no que teimamos em chamar de natureza humana.
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