segunda-feira, 11 de março de 2013

Nada mudou tanto quanto a medicina; sangue, ossos e até órgãos artificiais crescem em laboratórios

Luli Radfahrer é Ph.D. em comunicação digital pela ECA-USP, professor há mais de 15 anos na USP. Trabalha com internet desde 1994, fundou a Hipermídia, uma das primeiras agências de comunicação digital do país.
Da janela tudo parecia igual. Na rua, a mudança era grande. Os carros não tinham pilotos. O ar parece limpo. As pessoas, sujas. E magérrimas. Dava para confundi-las com moradores de rua.
Elas aparentam ter uns 30 anos, me surpreendi ao saber que tinham mais de 70. Estavam na flor da idade, pois a expectativa de vida ultrapassava os 120.
Meu intérprete diz que a magreza contribuía para a longevidade e que a "sujeira" era biotecnologia, explorando micro-organismos na pele e cabelo e protegendo-os de agentes nocivos como álcool e sabões. Ele é um robô, tem a forma de um papagaio. Pousado no ombro, me faz parecer um pirata.
Apesar de ridículo, não me deixariam sair sem ele -por segurança, disseram, mesmo que o crime físico estivesse quase erradicado por ali.
"Come-se muito pouco, alguns nem dormem", continua ele, enquanto eu comia um prato com cheiro e gosto estranhos, que parecia lasanha de micro-ondas.
Era carne sintética, tecnologia que multiplicou a produção de alimentos para atender os 9 bilhões. Boa parte da comida era geneticamente modificada, reciclada ou criada em laboratório.
Disseram que era nutritiva e livre de toxinas, o que pareceu bom demais para ser verdade.
É difícil descrever o impacto de tantas máquinas inteligentes, onipresentes, no cotidiano. De roupas climatizadas e sempre limpas a fachadas de prédios mutantes, tudo parece piscar e pular. Continue lendo...
Não há computadores, celulares ou óculos. O software acompanha seu usuário na forma de "foglets", névoas de nanomáquinas que se configuram conforme a necessidade das pessoas. Não me acostumei com elas, por isso o papagaio.
Ele me conta das mudanças ocorridas nas três últimas décadas. Quase toda instituição teve de se reformular depois que surgiram a energia gratuita e a nanotecnologia, limpando o ar, reciclando o lixo e gerando um volume quase infinito de recursos.
Nada mudou tanto quanto a medicina. Sangue, ossos e órgãos artificiais crescem nos laboratórios, são adaptados ao DNA de seus usuários e trocados desapegadamente em funilarias humanas. Privadas identificam doenças e previnem cânceres. Neurocosméticos rejuvenescem a pele. Teme-se a eugenia, armas e drogas perigosas.
O papagaio, fui descobrir, me vigiava. Visitante de outra época, sem histórico, eu era imprevisível.
Em 2043 boa parte da vida pessoal é monitorada, não se fala em privacidade. Os espaços comuns são de propriedade privada, toda comunicação é registrada e interpretada.
Muito do que chamam de memória é só armazenamento sem reflexão. Infraestruturas lembram de tudo, e como não esquecem, não perdoam. Perdidas, muitas pessoas parecem sós, frágeis, infantilizadas, formatadas por mecanismos de busca e objetos de consumo.
Alguns, cansados das inconsistências humanas, recorrem a relações artificiais com máquinas. Do sexo enriquecido aos bebês que nunca crescem, tudo é artificialmente sereno.
O Mundo Novo parece tão Admirável quanto assustador. No "Tec", que tem 60 anos, continuamos a analisar o impacto da tecnologia no que teimamos em chamar de natureza humana.

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