terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Tendo sido importante, a memória dela se conecta com praticamente todas as vivências do filho

Francisco Daudt é médico e psicanalista. Carioca, é autor de seis livros, entre eles "Onde Foi Que Eu Acertei?".

Aparecem notícias de que um cientista russo foi queimando neurônio por neurônio no cérebro de um paciente que queria se livrar das memórias de sua mãe que o atormentavam. Finalmente, bingo, o paciente nem sabia mais que havia tido mãe! O cientista queimara o "neurônio-chave" da lembrança de mãe.
Todo o meu prezado ceticismo veio à tona ao ler essa notícia. Um neurônio para mãe?
Mas... Que mãe? Sua mãe da infância, da adolescência ou a atual? A que o atormentou e a que o encantou? A que ele comparava com inveja com a mãe de seus colegas? A que o levava ao colégio ou a que o esquecia lá? A que usava Joy do Jean Patou nos anos 50 e passou para Diorissimo, nos 60? A que pedia que ele a ajudasse a abotoar a cinta? A que o espancava com o cinto? A que o seduzia e depois o abandonava? A chantagista emocional? A mãe idealizada que convive em todos nós? O ódio dela que ele cultivou por anos? Os mil ressentimentos entrelaçados em suas relações com as mulheres e com a vida?
O próprio conceito de mãe, maternidade, instinto materno, vocação maternal, matriz, a mãe gentil dos filhos deste solo, língua-mãe, "mater ecclesiae", Santa Maria, mãe de Deus, "alma mater", matriarcado, o indissociável conceito de filho, filial/matriz, mamãe, mamãe, o avental todo sujo de ovo, o churrasquinho de mãe, do Teixeirinha ("O maior golpe do mundo que eu tive na minha vida foi quando, com 12 anos, perdi minha mãe querida" -veja no YouTube, se você não conhece), "Minha nossa (senhora)!", mãe em outras línguas, "motherfucker", mãe das águas Iemanjá, "É a mãe, seu...!", matricídio?
Uma coisa é certa: essa mãe foi de uma importância enorme na vida do sujeito/objeto dessa experiência, senão ele nem iria pensar nela -quanto mais se sujeitar a um procedimento tão arriscado. Tendo sido importante, sua memória se conecta com praticamente todas as vivências que ele teve, através de vários graus de separação (diz-se que estamos ligados a quase todas as pessoas do planeta por até seis graus de separação: minha mãe conheceu Hitler em Berlim, na Olimpíada de 1936, logo, estou ligado a ele por dois graus, e por aí vai).
Se assim é com pessoas, que dirá com memórias. Uma puxa a outra porque se vinculam pelas conexões neuronais, numa rede gigantesca.
Freud dizia que se poderia reconstituir a vida inteira de uma pessoa a partir de um único sonho. Ele vislumbrou o que era a rede neuronal e a complexidade que ela tem, muito antes da neurociência e das ressonâncias magnéticas funcionais.
Eis porque não acredito na experiência do russo. A menos que ele esteja a reproduzir o feito que deu ao português Egas Moniz, em 1949, o primeiro prêmio Nobel que seu país recebeu: a invenção da lobotomia como método de tratar violentos incuráveis (e transformá-los em vegetais ambulantes). Seria a única maneira de erradicar a memória de mãe numa pessoa para quem ela fez diferença (para o bem ou para o mal, não importa).
Um caso típico de, como no antigo ditado, "jogar fora o bebê junto com a água do banho".

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