domingo, 14 de julho de 2013

NO PARÁ MULHERES COM OS DIAS CONTADOS PARA SEREM ASSASSINADAS COVARDEMENTE

DUAS "MARIAS" AMEAÇADAS DE MORTE
Em dezembro de 2011, Maria Regina Gonçalves percebeu o quanto a própria vida tomara rumos diferentes e ‘paz’ era palavra não mais conjugada no próprio cotidiano. Em um show dos ídolos Zezé di Camargo e Luciano no município de Eldorado dos Carajás, Regina se viu atenta mais às pessoas ao redor que ao espetáculo musical à sua frente. Tensa, buscava perceber em cada olhar ou gesto, uma atitude suspeita. “Se alguém chegava perto ou me olhava um pouco mais eu ficava nervosa. Praticamente não me diverti naquela noite”, diz ela.
Maria Regina preside o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Eldorado dos Carajás, distante 770 quilômetros de Belém. Vive sob ameaças constantes e atualmente não anda sem a proteção de pelo menos dois outros dirigentes sindicais, que se dispuseram a ser seguranças informais de Regina.
As ameaças são consequência do trabalho de organização do STTR de Eldorado dos Carajás em relação a quatro mil famílias espalhadas por 22 projetos de assentamento para reforma agrária no município. Os projetos estão regularizados no Incra, mas ainda não titulados. As famílias receberam contrato de concessão de uso, um título provisório, mas que permite a obtenção de financiamento para a produção. Continue lendo...
O problema é que há fazendeiros se apropriando das terras, cercando os assentamentos, comprando lotes de posseiros e fazendo pressão para que os agricultores abandonem os terrenos. “Virou concentração de terras de fazendeiros, eu mesma estou cercada por três lotes que estão nas mãos deles. O recado que os agricultores ouvem é que se os fazendeiros não comprarem a terra dos trabalhadores, compram das viúvas”, diz Maria Regina, no quintal da sede sindical, sob o olhar atento dos dois seguranças.
Não é uma compra legal. Não é possível, na letra da lei, se adquirir lotes desses assentamentos, pois eles estão destinados à reforma agrária. Mesmo assim, no município que presenciou o massacre de 19 trabalhadores sem terra em 2006, lei nem sempre é algo seguido à risca.
SINA: AMAZÔNIA
Eldorado dos Carajás é um município relativamente pequeno, com pouco mais de 2.900 quilômetros quadrados. Pelo menos 70% do município são áreas rurais. Entre atividades de garimpo e glebas voltadas à pecuária, se desenvolveu tendo sempre os conflitos pela posse da terra como pano de fundo.
Segundo o STTR do município, entre 1982 a 1996 mais de 50 trabalhadores rurais foram assassinados em Eldorado. “Sempre foi um ‘deus nos acuda’ que culminou com a chacina da Curva do S”, diz Regina. Curva do S é o local onde os sem-terra foram imprensados e mortos pelas polícias militares de Parauapebas e Marabá em 1996.
A trajetória de Maria Regina é uma história de migração. Nasceu num lugar conhecido como ‘Cabeça de Onça’, no Ceará. Lugar árido, quase sem perspectivas. Quando a fome roncou mais alto, a família dela se mudou para um lugarejo chamado Barra do Corda, no Maranhão, em março de 1973. As coisas não melhoraram da forma pretendida. “Eu tinha dez anos e ajudava meu pai na roça. Era um sofrimento, não tinha água, minha mãe chorava quando eu pedia comida e não tinha. Eu não tinha o sentimento de entender”. Regina era a mais velha de oito irmãos na época. Depois chegariam mais quatro. “A gente vivia na miséria nesse lugar. Meu pai queria se libertar disso”.
A liberdade da pobreza seria a Amazônia. Pelo menos foi isso que um tio anunciou em tom de novidade. “Esse tio tinha um rádio de pilha. Nós só tinha a vida mesmo. E ele trouxe o rádio pra gente ouvir a Voz do Brasil. A gente reunia ao redor do rádio e ouvia a propaganda sobre a Amazônia. Meu pai decidiu vir atrás de terra”.
Mas a primeira parada foi no garimpo. O pai de Regina foi sozinho ao Pará e nos dois primeiros anos da década de 80 chafurdou na lama de Serra Pelada em busca de ouro. Não teve sorte. O pouco que conseguiu foi roubado. Ouviu falar de um projeto de assentamento em Pedra Furada, que então fazia parte de Curionópolis, mas seria depois parte do futuro município de Eldorado dos Carajás, emancipado apenas em 1987.
Havia terras em Eldorado. Ficava longe, 22 quilômetros distante da sede do município, em um arremedo de estrada de acesso complicado. Enquanto o pai de Regina lutava para conseguir um pedaço de chão, Regina continuou no Maranhão. Em 1982, casou e numa terra arrendada, plantou sozinha um alqueire de arroz e milho. Naquele ano a água não veio e toda a produção foi perdida. Batia o desespero.
No Pará, o pai de Regina era posto para fora das terras pela Polícia Militar. A terra que conseguira havia sido por desistência de um posseiro. “Tem muita malária e diz que os homens [a polícia] estão chegando”, ouviu. Quem chegou foram pistoleiros que botaram todos os posseiros para fora das terras. “Meu pai dizia que saiu sentindo a bala nas costas, porque as armas estavam engatilhadas. Ele andou escondido da polícia por cinco anos, porque desde o início ele se colocava na frente, brigava mesmo”, conta.
Em 1986 Regina visitou o pai. Ele havia sofrido mais um despejo, com pistoleiros queimando tudo, matando animais. “Quando cheguei vi minha família, meu pai, minha mãe, toda judiada, torturada, me assustei e voltei pro Maranhão”.
Por pouco tempo. Os agricultores despejados ocuparam o Incra em Marabá e depois voltaram para as terras em novembro de 1986. Em fevereiro de 1987, fazendeiros também começaram a ocupar mais lotes e a guerra se tornou aberta entre pistoleiros e posseiros.
Uma das vítimas já havia sido morta anteriormente. Em abril de 1985 a freira Adelaide Molinari foi alvejada por um pistoleiro no Terminal Rodoviário de Eldorado. O alvo não era ela, e sim Arnaldo Delcídio Ferreira, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Eldorado, que saiu ferido do episódio. Sete anos depois, Arnaldo seria executado por pistoleiros.
Quando Arnaldo foi assassinado, já nos anos 90, Regina já estava morando em Eldorado. Retornou em 1987. Acompanhou a luta do pai pela posse e regularização dos lotes de terra, ainda hoje nas mãos da família. A morte de Arnaldo, grande amigo de todos e líder sindical respeitado fez com que Regina passasse a se envolver mais na luta camponesa. “Eu me descobri no coletivo quando conheci o trabalho do Arnaldo, sempre se solidarizando com as pessoas pobres. Comecei a ter uma revolta contra quem manda matar. Só que a vida não para na morte dos que foram assassinados. A gente continua”, diz.
AMEAÇAS
Em 1996 Maria Regina assumiu a presidência do Sindicato. Antes havia sido tesoureira e secretária de políticas sociais. “A primeira ocupação, como presidente, foi da fazenda de um homem chamado Geraldo Mendonça”, lembra. 
Sem abandonar o próprio lote, Regina passou a receber ameaças recorrentes. “Minha filha recebeu uma ligação dizendo que iam matar toda a família. Passei a viver o tempo todo assombrada”.
Ligações desconhecidas se tornaram comuns. “Todo mundo que entra no sindicato é suspeito”. As ameaças são veladas ou explícitas. No dia 27 de junho de 2012, nove fazendeiros entraram na sede do sindicato para pressionar Regina. O diálogo mostra o nível de tensão:
“Só viemos falar com ela do risco que ela tá correndo”, disse um fazendeiro.
“Isso já é uma ameaça”, respondeu Regina.
“A senhora está mobilizando esses sem-terra pra invadir as terras!”.
“Eu não estou mobilizando ninguém e já disse para o senhor não apontar o dedo para mim!”.
Depois desse diálogo ríspido, Maria Regina ouviu boatos que 60 pistoleiros haviam sido contratados para fazer a segurança nas fazendas. “Eu tenho de passar pelo vão de duas dessas fazendas. E nas duas já teve assassinatos. Num, sumiram com o corpo, e no outro o corpo foi encontrado dentro de um poço”.
Regina precisa passar de moto pela estrada. “Não tem como eu andar nessas condições. Eu não durmo tranquila, passei a ter sempre dois companheiros me protegendo”. Com cinco filhos e quatro netos, Regina diz estar cansada. Não quer saber de ouvir falar em ocupações de terra. Sente medo.
O Sindicato deixou de incentivar maiores mobilizações. “Eu represento um perigo para eles. Os fazendeiros acham que eu sou capaz de mobilizar esse mundaréu de gente e não é bem assim”.
O que a dirigente sindical quer agora é paz. Os filhos não deixam os netos andarem com ela por conta dos riscos. A mãe, sempre que precisa estar com a filha, fica quase o tempo todo rezando. 
“Quero paz, para mim e para quem tá comigo. Não é fácil andar apenas com a fé. A gente sabe o poder de uma bala. Por que tem de morrer? Eu não quero morrer, só quero ficar à vontade, tranquila”.
Ameaças ao sonho de sustentabilidade
Ao longo das últimas décadas a floresta amazônica tem produzido centenas de heróis anônimos. Maria do Carmo Pinheiro Chaves, a “Du Carmo” é uma delas. Assumiu a coordenação de uma comunidade agroextrativista em plena mata e por bater de frente contra caçadores ilegais e traficantes de drogas, passou a ser ameaçada de morte.
A comunidade é a Lago Verde, fincada no quilômetro 55 da rodovia BR-422, conhecida como Transcametá, em Baião, a 197 quilômetros da capital Belém, no nordeste paraense. É uma estrada poeirenta, maltratada e cheia de buracos. A comunidade fica num local de acesso ainda mais difícil, numa estradinha de terra, cheia de areais traiçoeiros, onde o atoleiro de carros é quase certo. São 14 quilômetros mata adentro até chegar a Lago Verde.
Na comunidade moram atualmente 20 famílias. O que elas querem é preservar o meio ambiente e garantir a sua sustentabilidade. Ao contrário de outras mulheres que lutam pela terra no Pará, a batalha de Maria do Carmo não é para garantir um lote de assentamento. No caso das famílias de Lago Verde, a intenção é extrair da floresta o que de melhor ela pode oferecer. Desde pequenas plantações, passando pelo extrativismo até desembocar num ainda incipiente projeto de criação de peixes.
E é justamente por combater a caça e a pesca predatória que Maria do Carmo vem sofrendo ameaças. Por três vezes, homens armados de espingardas foram até a casa dela ameaçá-la de morte. “Tem sempre aquela preocupação, porque já fui ameaçada três vezes”, diz do Carmo, enquanto prepara um café na cozinha da casa de chão batido.
O problema, segundo ela, é que toda a área ocupada pelas famílias, algo em torno de 26 alqueires, entre os municípios de Cametá e Baião, era um corredor do tráfico de maconha e cocaína. Traficantes passavam por picadas na mata, até chegar ao rio cujo nome batiza a comunidade. Como o local é de acesso complicado, tornava-se fácil despachar a droga para outros municípios usando os braços de rio como rota. “Era um tráfico pesado. Dez anos atrás costumavam maltratar e até matar famílias que estivessem por aqui”, conta Maria do Carmo.
A chegada de Maria do Carmo em 2010 começou aos poucos a alterar essa realidade. Adquiriu um pedaço de terra no local e passou a buscar apoio no Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Sintraf). Logo viria a se tornar uma liderança sindical. A capacidade de organização, que ela diz ser nata, atraiu outras famílias interessadas em produzir diretamente na mata. “No início eram 36, mas eu defini que tem de ter disciplina, tem de querer preservar, tem de buscar se organizar. Restaram, por enquanto, 20 famílias, mas se não tiver o espírito de preservar não pode ficar”, diz.
A base sustentável ainda não foi alcançada. Por enquanto há plantações de banana, abóbora, melancia, amendoim e mandioca. A intenção futura é instalar um tanque para fazer a criação de peixes. Quem caçava e pescava clandestinamente se sentiu incomodado com as novas regras implantadas por Maria do Carmo. No dia 14 de junho de 2011, um caçador chamado Manoel Bala mandou um filho dele avisar ‘Du Carmo’ que só tinha um jeito de resolver o problema. “Era me matando”, conta Maria. Alguns dias depois ela recebeu nova ameaça. “Me chamaram para uma ‘reunião’ na casa de um agricultor que não aceitava minha liderança. Ele disse que era melhor eu me aquietar”.
VENENO
Maria do Carmo deixou de pescar sozinha e não fica desacompanhada por muito tempo. Há sempre alguém por perto. Pode ser o marido ou algum dos vizinhos.
As adversidades têm sido constantes. Em outubro de 2012 ela descobriu que haviam jogado óleo queimado e um veneno chamado timbó no rio. É um veneno capaz de matar qualquer peixe que esteja no seu raio de ação. Maria do Carmo denunciou o crime ao ministro da Pesca Marcelo Crivella no mesmo ano, quando o ministro esteve em Belém.
Maria do Carmo costuma ficar emocionada quando lembra o episódio. “Apareceram os peixes boiando mortos, foi uma tristeza só”, diz. No Lago Verde é fácil encontrar surubins, tucunarés, piranhas e, com um pouco de sorte, até pirarucu. Até a chegada de Maria do Carmo e as outras famílias, se praticava a pesca do arrastão, altamente predatória.
Na mata há árvores valorizadas, como jatobá, cedro, ipê e cupiúba, o que torna a área de preservação cobiçada também pelo potencial madeireiro que possui. Animais como pacas, veados e porcos do mato ainda são comuns. A fiscalização é complicada, já que não há pessoas em quantidade suficiente para dar conta de vigiar a floresta.
São pessoas humildes, que moram em casas de barro ou madeira, com piso de chão. Casas cobertas de palhas. A agricultura praticada ainda é a de subsistência. Mas há esperança crescente. “Aqui se tornou nosso lugar”, diz o ex-caminhoneiro Misaque da Silva, um dos moradores. Segundo ele, é um privilégio cuidar da área de preservação.
Ao receber as primeiras ameaças, Maria do Carmo demorava a dormir. Passava noites em claro, orando e se perguntando se havia feito a escolha certa. Atualmente não tem mais dúvidas disso. Aos poucos tem buscado orientação sobre o que deve fazer tanto para se proteger como para desenvolver as atividades na já batizada ‘Associação dos Pequenos Produtores e Agricultura Familiar de Lago Verde’.

Ela nunca fez registro de Boletim de Ocorrência Policial em relação às ameaças. Acredita que com o tempo elas cessarão. O plano mais próximo é construir uma escola para as 22 crianças que já estão na comunidade. “Minha preocupação é a sobrevivência das famílias”, diz, enquanto vai buscar orgulhosa um saco de amendoim colhido há pouco tempo. “É a nossa primeira produção. E é só o começo”. (Diário do Pará)

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