segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A exigência ética em relação a políticos obviamente introduz um elemento de insegurança jurídica, mas isso é essencial na ética, não é secundário nela.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política da USP.
Causou choque a recusa do senador Lobão Filho, relator do regimento do Senado, a incluir a palavra "ética" no compromisso que os membros da Casa prestam ao tomar posse. O assunto ressoou até no jornal espanhol "El País". Disse o parlamentar que ética é questão subjetiva, com significados diferentes conforme a pessoa. Ele está errado e direi por quê. Mas também erram alguns críticos seus - os que não têm dúvidas sobre o que é certo ou errado, postura que só vale numa visão bem simplista da ética.
Como professor de ética, sempre insisto que ela não consiste numa lista pronta, que nos limitaríamos a obedecer. Tal lista existe e se chama lei. Leis são votadas pelo poder competente, sendo sua violação punida pela Justiça. O que importa é cumprir a lei, pouco importando por quê.
Mas a ética é diferente. Exige muito mais. A lei pede apenas a obediência nos atos; na ética, também está em pauta a intenção. Para o sistema legal, é suficiente que eu pague os impostos, não mate, agrida ou furte ninguém; mas essa obediência externa, se faz de mim um não criminoso, não me torna uma pessoa ética. Porque, se acatei as leis só por medo do castigo, não foi por amor a elas, nem por respeito aos outros, meus próximos.
Por ser exigente, a ética incomoda. Ética é antes de mais nada isso: uma enorme perturbação. Interpela os indivíduos, para que eles se tornem pessoas. Eu me explico. Cada um de nós é, em seu corpo, um ser único, indivisível. Isso é o indivíduo. Mas, dizendo isso, só descrevo um fato. Já a palavra "pessoa" é mais que isso. Designa um titular de direitos e obrigações. Saio da descrição e entro na prescrição. Um indivíduo nunca chegará a pessoa, se não assumir seus deveres e direitos. O que a ética cobra de cada um de nós é esta responsabilidade pelos atos. Continue lendo...
Não basta, pois, cumprir ordens. Há pessoas, sobretudo as de religiosidade superficial, para quem tudo o que deve ser feito está nos mandamentos divinos. Elas os cumprem à risca. Mas, quando se limitam a obedecer o que está escrito, sem pôr nada em questão, não chegam ao nível ético. Uma coisa é tratar os Dez Mandamentos como lei - outra, como preceitos morais ou éticos. Porque, quando você os considera pela ética, tem de aprofundar. Por exemplo, o que quer dizer "não matarás"? É apenas "não tire a vida de outro ser humano" - ou deve incluir "socorra quem estiver ameaçado de morte"? É consenso que não devo matar ninguém, salvo legítima defesa; mas, se deixo matarem alguém, não estarei sendo cúmplice de assassinato? Essa conclusão me parece lógica, mas não é trivial ou óbvia. E mais ainda: e se "matar" também for "deixar uma pessoa morrer, quando tenho condições de ajudá-la", por exemplo, saciando sua fome? Neste caso, se não contribuo para minorar a fome mesmo de quem eu não conheço, estou matando. Ou ainda: se voto num candidato ou partido indiferente à fome, também estaria matando. Pode haver divergências nestas conclusões, mas vale o princípio de que "matar" não é apenas o que é óbvio (você usar a faca ou o revólver para tirar uma vida), porém pode significar várias outras coisas.
Mais um ponto. A maior parte dos dez mandamentos começa pelo "não": isso sugere que, para ser ético, seria suficiente nada fazer de mau. Mas vamos expandir. Num regime ditatorial, não colaborar com a repressão é digno; mas basta? Não fará parte da ética lutar contra a ditadura? Num país assolado pela miséria e marcado pela corrupção, é ético o indiferente? Ou, para ser ético, tenho que combater esses dois flagelos?
A corrupção, como insistimos alguns há muitos anos, mata. Corruptos podem ser pessoalmente adoráveis, porque não enfiam a faca ou atiram em ninguém. Mas matam. Igualmente a miséria. Pode haver diferenças políticas no modo como enfrentamos miséria e corrupção, mas enfrentá-las é um imperativo ético.
Por isso, quando discutimos a ética, ela não é nada óbvia. Daí, a inanidade de expressões como "ética vem do berço", como se as pessoas nascessem já decentes ou não (se assim fosse, não teríamos por que condenar quem é antiético, porque a pessoa teria nascido desse jeito - e nada poderia mudar...). Ou mesmo o absurdo de supor que a ética vem só da família - o que dispensaria quem cresceu sem família, ou com má formação familiar, da responsabilidade de ser ético. De modo geral, quem tem muita certeza sobre a ética é porque obedece ao que lhe foi ensinado como se lei fosse. Ou seja, não percebe o que a ética é, nem que ela é mais exigente do que qualquer lei.
Mas este campo de incerteza que há na ética, quando saímos da superfície e do óbvio, não justifica o senador. Ele deveria saber que é bem essa imprecisão do ético, essa sua capacidade de expansão, esse progresso para cobrir sempre novos significados, que lhe confere valor. Nestas décadas, muitos avanços nossos, como o desprezo que passamos a ter pelo assédio sexual ou moral, pelo preconceito racial ou de gênero, decorreram de questionamentos éticos. Nossa sociedade foi cedendo no moralismo, na moral das aparências, para se tornar mais exigente na ética dura. É um "work in progress", um trabalho em andamento, e é um dos grandes motores do desenvolvimento social. Já se tornou obsceno tolerar a miséria. A carteirada perdeu a graça. A corrupção se tornou feia. A exigência ética em relação a políticos obviamente introduz um elemento de insegurança jurídica, mas isso é essencial na ética, não é secundário nela. Faz parte da ética nos interpelar, nos tirar da zona de conforto, nos questionar. Por isso mesmo, ela precisa estar presente no compromisso dos senadores.

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