Caetano Emanuel Viana Teles Veloso nasceu
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Quando eu estava num xadrez da Polícia do Exército, durante o governo militar, no quartel de Deodoro, ouvi diversas vezes, à noite, gritos e gemidos estarrecedores, não raro seguidos de comandos de emergência, “traz a padiola”, os urros da vítima dando lugar, depois de uns segundos de silêncio terrível, à azáfama dos algozes. Eu estava entre presos políticos (Gil, Ferreira Gullar, Antonio Callado, Paulo Francis, Perfeito Fortuna eram alguns deles) e havia uma ordem de não nos molestar, agredir ou ferir. Os companheiros de xadrez (estávamos divididos em dois grupos, cada um numa cela) diziam que aqueles gritos podiam ser de outros presos políticos, trazidos de diferentes quartéis, os quais não seriam, como nós, meros artistas, intelectuais e estudantes acusados de subversão, mas ativistas ligados à luta armada. No entanto, a hipótese mais resistente (talvez contando com coisas entreouvidas aos carcereiros) era a de que fossem “criminosos comuns”, gente pobre dos subúrbios e das favelas a sofrerem aqueles maus tratos (alguns pareciam perder a vida nessas sessões). Continue lendo...
Desde então fiquei com uma ideia da sociedade brasileira que eu não seria capaz de conceber antes. Estivera sempre entre pessoas que queriam lutar contra a desigualdade. Mas eu vinha de uma cidade pequena e calma, sem ninguém muito rico nem muito pobre. Numa região úmida e fértil, na saída de um rio, não se viam pessoas passando fome. Havia os loucos de rua: eram achincalhados pelas crianças e tratados com condescendência pelos adultos. Na cadeia municipal às vezes ia parar um ladrão, um suspeito de crime passional cometido na área rural, uns moleques que brigavam embriagados. Pertencendo a uma baixa classe média de uma cidade em que os extremos não eram evidentes, concebíamos a disparidade social quase abstratamente. Meu pai tinha amigos de esquerda, a maioria vivendo em Salvador e todos com formação intelectual sólida. Havia um comunista que me comovia: era um barbeiro, mulato claro, alto, de origem claramente popular. Na verdade, era o único, em minha cidade, de quem se dizia pertencer ao Partido Comunista Brasileiro. Drogas, só em filmes americanos e em lendas que rodeavam a fama de grandes músicos de jazz não brasileiros e, entre os nossos, a de Orlando Silva e Lúcio Alves. A possibilidade de que, no quartel da PE, gente pobre pudesse estar sendo espancada me levou à sensação amarga quase traduzível pelo “odeio o Brasil” que, dolorosamente, nomeou um artigo de Francisco Bosco não faz muito tempo.
Mas o Brasil da violência cruel contra cidadãos indefesos é mesmo digno de ser odiado. Sem alguma fúria e certa gravidade não estaremos nem mesmo pensando sobre o Brasil. Essa lição que aprendi em Deodoro, em 1968, nunca foi esquecida. E seu sentido vem à tona diante de um caso como o de Amarildo, um ajudante de pedreiro, conhecido pelos vizinhos como homem muito trabalhador, pai de seis filhos, que sumiu, repito, ao ser levado para a UPP da Rocinha. E justo nesse julho. E logo numa UPP. É doloroso que os mínimos movimentos que sugerem ação eficaz do estado na sociedade se exponham assim como que a clamar por revolta. Há umas quase injustiças históricas na situação densa que estamos vivendo. Mas trata-se de outra coisa. Trata-se de termos carregado desde sempre males muito profundos, e quando eles esboçam se expressar formam zonas de desacertos, sensação de desperdício, incômodo dobrado.
As lojas, a mídia, o povo, todos celebram neste domingo o Dia dos Pais. Que todo o país pense nesse pai de seis como o representante do Pai que dá à pátria o nome de pátria.
Temos de encarar o problema da injustiça. O Brasil luminoso só surgirá se superarmos o que somos. É o nome de Amarildo que devemos repetir para todos e para cada um de nós mesmos.
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