Adriana Calcanhotto é compositora e cantora da MPB nascida no
Rio Grande do Sul.
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Acompanho o movimento das mãos, elegantes, másculas, de
unhas bem lixadas, redondas nos cantos. Não são mais as mesmas, têm marcas que
não conhecia e parece que agora se movem com menos precisão. Arriscaria dizer
que tremeram levemente quando folheando as páginas dos cadernos, que eu não
sabia que existiam. São oito ou dez cadernos pequenos, empilhados na mesa de
centro da sala. Ele aponta e me diz “se quiser saber quem sou, está tudo aqui”.
Nunca soube que ele tivesse cadernos, nunca vi cadernos antes, em nenhuma das casas onde morou, ou moramos. Nos escritórios, no meio das baquetas, dos papéis de desenho, dos instrumentos musicais, das revistas de arquitetura, nunca vi cadernos. Mas achei engraçado, diz que está tudo ali, embora não encontre o que quer que seja que procura, caderno por caderno, folha por folha. Engraçado porque também tenho uns dez cadernos, que comprei ou ganhei, empilhados, na bancada. Mas nos meus não há nada escrito. Não escrevi. Por não saber o que dizer, com certeza. Ou como. Ou talvez por saber o que dizer e preferir não dizê-lo. O silêncio sempre é menos precário. Com o que encher dez cadernos pequenos? Com pontos de interrogação no final de períodos curtos? Dez cadernos vazios não seriam mais úteis do que cheios?
Ele não parece ter essas dúvidas, o meu pai. Sabe que está nos cadernos, conforme anunciou. Só não encontra o que procura. Exatamente o que aconteceria comigo, caso tivesse escrito. Por isso é que não me dei ao trabalho de escrever, imagino. Espero, paciente e curiosa. Ganho tempo enquanto ele folheia tudo novamente, agora de trás pra frente. Tempo para assimilar a surpresa de saber que ele tem cadernos. E que anota coisas, diferentemente de mim, que tenho a mesma pilha de cadernos, em branco.
Como podemos continuar tão iguais e tão diferentes? Fomos ficando mais iguais à medida que nos tornamos cada vez mais diferentes? Ou não faz diferença se escrevemos ou não, já que na hora de ler não se vai encontrar nada mesmo? Nisso somos idênticos. Quem sabe ele não escreveu aquilo que está procurando? Isto é o mais provável. Está, se me conheço, porque o conheço, procurando o que não há, independentemente de quem o tenha escrito, se é que foi escrito. Se é que seria possível escrever isso que ele procura, e não encontra.
Finalmente as mãos me passam um dos cadernos, aberto, com a caligrafia que não é igual ao que era, mas que eu reconheceria a centenas de milhas daqui, e diz: “olha isso”. A letra de um samba. Não foi ele quem escreveu, apenas copiou ou anotou pra não esquecer. Um samba-enredo que tem uma letra ridícula porque precisa enfiar o tema à força nos versos, por causa de patrocínio para o desfile da escola. O que talvez pudéssemos chamar de o samba-enredo menos inspirado do mundo.
Obviamente não era isso que ele procurava, mas rimos mesmo assim. Fica claro que não encontrou o que queria me mostrar, o mesmo que aconteceria comigo. Desconfio que só quisesse, afinal, me fazer saber que tem cadernos e que ali se encontra, embora não pareça, assim, à primeira vista. Tem cadernos, caso eu queira saber quem ele é. Nos abraçamos, o tempo está fechando, vai chover, e preciso pegar a estrada de volta.
Nunca soube que ele tivesse cadernos, nunca vi cadernos antes, em nenhuma das casas onde morou, ou moramos. Nos escritórios, no meio das baquetas, dos papéis de desenho, dos instrumentos musicais, das revistas de arquitetura, nunca vi cadernos. Mas achei engraçado, diz que está tudo ali, embora não encontre o que quer que seja que procura, caderno por caderno, folha por folha. Engraçado porque também tenho uns dez cadernos, que comprei ou ganhei, empilhados, na bancada. Mas nos meus não há nada escrito. Não escrevi. Por não saber o que dizer, com certeza. Ou como. Ou talvez por saber o que dizer e preferir não dizê-lo. O silêncio sempre é menos precário. Com o que encher dez cadernos pequenos? Com pontos de interrogação no final de períodos curtos? Dez cadernos vazios não seriam mais úteis do que cheios?
Ele não parece ter essas dúvidas, o meu pai. Sabe que está nos cadernos, conforme anunciou. Só não encontra o que procura. Exatamente o que aconteceria comigo, caso tivesse escrito. Por isso é que não me dei ao trabalho de escrever, imagino. Espero, paciente e curiosa. Ganho tempo enquanto ele folheia tudo novamente, agora de trás pra frente. Tempo para assimilar a surpresa de saber que ele tem cadernos. E que anota coisas, diferentemente de mim, que tenho a mesma pilha de cadernos, em branco.
Como podemos continuar tão iguais e tão diferentes? Fomos ficando mais iguais à medida que nos tornamos cada vez mais diferentes? Ou não faz diferença se escrevemos ou não, já que na hora de ler não se vai encontrar nada mesmo? Nisso somos idênticos. Quem sabe ele não escreveu aquilo que está procurando? Isto é o mais provável. Está, se me conheço, porque o conheço, procurando o que não há, independentemente de quem o tenha escrito, se é que foi escrito. Se é que seria possível escrever isso que ele procura, e não encontra.
Finalmente as mãos me passam um dos cadernos, aberto, com a caligrafia que não é igual ao que era, mas que eu reconheceria a centenas de milhas daqui, e diz: “olha isso”. A letra de um samba. Não foi ele quem escreveu, apenas copiou ou anotou pra não esquecer. Um samba-enredo que tem uma letra ridícula porque precisa enfiar o tema à força nos versos, por causa de patrocínio para o desfile da escola. O que talvez pudéssemos chamar de o samba-enredo menos inspirado do mundo.
Obviamente não era isso que ele procurava, mas rimos mesmo assim. Fica claro que não encontrou o que queria me mostrar, o mesmo que aconteceria comigo. Desconfio que só quisesse, afinal, me fazer saber que tem cadernos e que ali se encontra, embora não pareça, assim, à primeira vista. Tem cadernos, caso eu queira saber quem ele é. Nos abraçamos, o tempo está fechando, vai chover, e preciso pegar a estrada de volta.
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